Uma certa poesia contemporânea portuguesa parece ter inaugurado, nos últimos anos, uma nova modalidade, um novo tom: o tristonho – é acompanhada nisso por um certo discurso crítico. Quem veja nesta uma nova Stimmung, para usar um conhecido conceito que convém deixar no original, quem veja nesta uma nova forma de as coisas nos surgirem e nos falarem, uma abertura do mundo, engana-se. Tal como o “poético”, que é essa característica que não chega a ser característica, também o tristonho é uma tonalidade, um modo de dizer que se agarra a todo e qualquer objecto – e toda e qualquer coisa, por mais entusiasmante ou entusiasmada que seja, pode ser rapidamente reconvertida e assumir essa cor própria ao tristonho. É um olhar, doente e dolente, que se abate sobre tudo (os termos, aqui, contam bastante) e que arrasta todas as coisas, uma música de fundo cinzenta que não conseguimos deixar de ouvir. Não é melancólica – falta-lhe a beleza convulsiva, falta-lhe mover-se na extremidade da língua, uma certa agitação que abala as coisas. Não é tristeza – pelo menos aquela, adolescente, de que falava Ginzburg relativamente a Pavese, também ela um extremo sem saída. É um tom menor, que se encaminha para o silêncio mas que nunca lá chega, um modo quase sussurrante de acabar os versos (basta ouvir tantos a declamar para ver que os versos acabam sempre na mesma ausência de tom, na mesma música de elevador de baixa intensidade).
O recente livro de Frederico Pedreira (Coração Lento, ed. Assírio & Alvim) é, a esse nível, exemplar. Exemplar porque este dispositivo encontra uma cristalização que nos permite pensar esta tendência recente, exemplar porque Frederico Pedreira tem uma oficina poética bastante bem feita, com um rigor na construção do poema que falta a muitos – mas a culpa não é deles, muitas vezes, mas da ausência de uma outra figura que desapareceu sem deixar rasto do panorama literário, o editor. Mas exemplar, também, porque Coração Lento permite perceber as limitações que esta tonalidade tem, esta, para citar Kafka – que não tem nada que ver com esta história -, “cinza que não é capaz de tomar um aspecto de vida”.
A imagem que comparece no segundo poema tem algum interesse (“fósforo a fósforo/ ilumino o teu rosto”), deixando ver o cuidado que Frederico Pereira tem em limar o conteúdo imagético – os poemas são, nos seus melhores momentos, pequenos cristais auto-contidos aos quais não se poderia acrescentar mais nada. O problema, no entanto, é que esse rigor na construção acaba por ser contrabalançado, arrastado, por um dispositivo retórico que está constantemente a ser usado e que se abate sobre praticamente todos os poemas de Coração Lento: é o poema “que não vale / mais que uma assinatura”, o “desengonçado estaleiro”, a “pobreza do verbo”, a “volta lenta dos derrotados”, o verso onde se vê “o verde dos olhos dissipar-se/ na chama triste do papel em branco”, a “pobre arte da oratória”, o coração “romântico, lasso, um pouco baço”, as palavras que “vogam acabrunhadas”.
Esta derrota, este derrotismo, esta impotência generalizada que capturou e que se abateu sobre uma parte considerável da poesia portuguesa contemporânea, em que o poema nunca vale “mais que uma assinatura”, em que o verso vê algo dissipar-se na “chama triste do papel em branco”, onde o poeta é este constante derrotado sabe-se lá bem do quê, esta modalidade tristonha que não conhece outra música que não seja esse baixo contínuo sempre igual e sempre o mesmo – tudo isto é um dispositivo retórico ou, pior, não passa de uma autocomiseração através da qual uma certa poesia se regozija pela sua própria impotência.
Autocomiseração poderá ser, dispositivo retórico é, certamente. Poderá haver aqui uma referência velada a um diagnóstico epocal – a poesia, afinal, desapareceu, ou quase, é hoje um fenómeno marginal – mas esta derrota não precisa de cair necessariamente nesta tonalidade tristonha (ouçam Camões, que tanta derrota conheceu: “acenda-se com gritos um tormento/ que a todas as memórias seja estranho”) e pode assumir outros movimentos e declinações: o protesto, o grito, o entusiasmo, tudo menos esta autocomiseração cinzenta que mais não é que o poeta a assumir o lugar que outros lhe deram (Kafka também poderia dizer-nos algo: “Como um cão! – exclamou ele, para que a vergonha lhe sobrevivesse.” E é preciso que a vergonha sobreviva, dita e escrita). Mas é dispositivo retórico, antes de mais, porque esta tonalidade só poderia ter um fim ao qual se recusa sempre: o silêncio puro e simples, o calar-se de vez.
Basta abrir um pouco ao acaso Coração Lento para ver funcionar esta retórica, esta “ladainha dos lábios”.
“A cidade ilumina-se sincera
nas sucessivas cabeças da vitória.
Mal-amados os que esperam
a dádiva beata na sarjeta.
Milhares de luzes: teço e desteço
o fio de Ariadne, uns olhos de peixe
amarrados na ponta.
Somos detestados por todos.
Nem a entrada no radical museu
nos é permitida.
O sangue uma miragem que
já não interessa.
Teremos chegado ao fim,
nem espinhos nem rosas,
só uma temperatura morna,
aquilo que a custo compramos,
a vera infelicidade”
Nos seus melhores momentos, a poesia de Frederico Pedreira lembra um certo João Miguel Fernandes Jorge, aquele modo quase narrativo de dar conta de encontros fugazes que deixam algo na memória, pequenos cristais de tempo que o poeta vai limando (veja-se, por exemplo, o poema 38, onde se relata um encontro numa taberna). Há inclusive um poema (o 22º da primeira parte), com o seu “lendo tudo do lado errado da pauta”, a “flauta furada pelo vento”, o “soluço apanhado à sorte”, que consegue escapar um pouco a esta tonalidade tristonha que deflagra em todos os momentos de Coração Lento (mas isto é porque evoca em mim a memória distante de uma “fífia” de que falava um poeta a que volto sempre). Mas a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, para continuarmos com uma possível afinidade de Frederico Pedreira, nunca cai nesse tom tristonho, vagamente nostálgico (“Houve um tempo (…) em que não se chamava versos/ às coisas em que um homem pensava ou sentia”, como se lê no último poema da segunda parte), assume outros e variadas tonalidades, nunca se fica por essa “temperatura morna”, “nem espinhos nem rosas”.
O dispositivo que se repete de poema para poema é aliás verificável por aquele que citei: começa por se delinear uma possibilidade (“tomara que”, como começa o poema 6 da segunda parte), por contar uma história (“estavam os três numa praia.”, como diz outro poema), por abrir uma situação em particular. Mas depressa essa possibilidade, essa abertura, se fecha irremediavelmente, depressa se abate sobre o poema esta tonalidade cinzenta que não é isto nem aquilo. O verso chave do poema, aliás, poderia ser esse “já não interessa”, sendo o resto uma declinação tautológica dessa ausência de interesse que o tristonho, enquanto modalidade, impõe (vejo agora que as notas que fui tomando dizem quase todas respeito ao final dos poemas). Seria interessante, aliás, ver como é que na economia dos diversos poemas se joga essa arquitectura cuidada, essa delimitação rigorosa de uma situação concreta e particular, com esta deflagração do “coração (…) lasso, um pouco baço”, que, a meu ver, é mais baço que lasso e que, consequentemente, acaba por contaminar o resto do poema – que fica sempre e irremediavelmente com essa “temperatura morna” que não é “vera infelicidade” nenhuma.
Que este dispositivo se repita em quase todos os poemas acaba por ter duas consequências desastrosas: a primeira é que, findo o livro, todos os poemas acabam por se equivaler, por se tornarem iguais (é o problema do tristonho: tudo é cinzento, tudo é subsumido a uma equivalência geral, todas as situações, todos os encontros, acabam nesta “temperatura morna”); a segunda é esta tonalidade sempre igual, sempre a mesma, que se abate sobre todo e qualquer poema. É um problema típico do tristonho: não conhece qualquer variação, não conhece outra velocidade, não aumenta nem diminui o som, mas mantém-se sempre na mesma música, sempre nesse tom médio, que não é nem muito alto nem muito baixo (a estrutura “nem…nem” pode ter outros usos, como se sabe), onde tudo é arrastado para essa baça “ladainha dos lábios”. É uma poesia epilogal à qual apetece dizer: e tudo isto é fado.