Licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa. Ainda se recorda quando decidiu que queria ser advogada?
Desde que me lembro que queria ser advogada, talvez influenciada pelos filmes, pelas séries, não sei… E na família também tenho advogados. Mas sempre tive esse gosto, esse interesse.
Mas não se ficou pela advocacia. Cumpriu sempre várias funções e, sobretudo, manteve sempre ligação à Academia…
Sim, a minha carreira não foi, de facto, linear. Sempre quis ser advogada, mas quando terminei o curso ingressei numa carreira académica em virtude dos convites que me foram surgindo por parte de alguns professores, designadamente para vir para a Universidade Nova. E como fui uma boa aluna, essa porta abriu-se naturalmente, embora não tenha sido algo que estivesse inicialmente nos planos.
É mãe de quatro filhos. Foi fácil conciliar a vida familiar com universidade, advocacia e outras funções que cumpriu (como, por exemplo, no Ministério da Justiça)?
Durante os primeiros dez anos da minha vida profissional dediquei-me à vida académica, o que é muito mais fácil de conciliar com a vida familiar e com os filhos. Tive quatro filhos, que nasceram todos muito próximos uns dos outros, entre 2001 e 2007, o que também foi uma opção para melhor poder conciliar todos os fatores da minha vida. Depois eles cresceram e, neste momento, já são jovens adultos, o que torna mais fácil conciliar tudo. É, obviamente, uma vida exigente, mas quando as coisas se fazem por gosto tudo se torna mais fácil.
Isso explica ter aceitado, nesta fase da sua carreira, o desafio de ser sócia na área de Resolução de Litígios da PLMJ?
Sempre trabalhei em advocacia, mas nunca de forma full-time. Estou na PLMJ desde 2016, há quase cinco anos, e, de facto, aceitei o desafio por já ter uma vida familiar mais tranquila. Claro que seria sempre muito difícil recusar um convite do José Miguel Júdice para trabalhar com ele. Tem sido uma descoberta interessantíssima. Como já disse, sempre quis ser advogada e, apesar de ter exercido sempre alguma advocacia, nunca o tinha feito muito intensamente. Posso dizer que foi algo que comecei a desenvolver recentemente com mais intensidade. Mas não é difícil conciliar com o ensino, uma vez que investigo e exerço na mesma área, da arbitragem e da resolução de conflitos. É fácil porque do ponto de vista técnico estou focada no mesmo assunto.
É caso para dizer que ter a prática, desde 2016, tornou-se uma mais-valia para a sua carreira como professora universitária?
Diria que sim. É uma mais-valia, sobretudo, na minha área, que é muito prática. É difícil ensinar a resolução de conflitos, o contencioso (talvez as pessoas percebam melhor assim), sem se perceber o que é um processo em tribunal, seja como juiz, seja como advogado. Não é impossível, pois há uma dimensão teórica que é muito importante, mas pode dizer-se que juntar a prática nesta equação é uma mais-valia, principalmente para os alunos. Estou constantemente a dar exemplos de processos em que estou envolvida – de forma abstrata, é claro –, permanentemente a dar exemplos, o que torna muito mais fácil explicar um conjunto de temas e de questões. Portanto, respondendo à pergunta, diria que sim: é uma mais-valia.
Especializou-se nas áreas de mediação e arbitragem. A utilização destes mecanismos é algo que tem crescido em Portugal?
Sim, sem dúvida. A mediação é uma forma de resolver conflitos para tentar chegar a um acordo. Um trabalho que tenho feito nos últimos anos e que tem crescido imenso, sobretudo, desde o início da pandemia. É um trabalho para tentar encontrar pontos de consenso entre as partes, um processo não contencioso, muito eficaz, que permite manter as relações, sejam familiares ou comerciais. Já a arbitragem é um mecanismo diferente, de resolução de litígios, não é por acordo, há uma sentença de um tribunal arbitral que vai decidir que alguém ganhou. Em termos de dinâmica é muito parecido com um processo em tribunal, mas a sua principal característica é que tem muita influência internacional. E o que faço, acima de tudo, é arbitragem internacional, ou seja, litígios entre empresas que não estão localizadas no mesmo país e que, por isso, não têm um tribunal nacional natural. Estas instâncias internacionais são procuradas porque as partes sentem, neste caso, que ficam ao mesmo nível, não existe um desequilíbrio entre os envolvidos, porque são nacionais de determinado país, porque não percebem bem as regras daquele sistema jurídico ou porque, simplesmente, preferem um sistema mais neutro. E é sobretudo esta arbitragem internacional que faço, em processos que, normalmente, envolvem empresas sediadas em dois países diferentes, mas que não são portuguesas. É algo que do ponto de vista globalizado tem crescido imenso e que vai continuar a crescer. Hoje em dia, qualquer empresa que queira ser de grande ou média dimensão tem de exportar e importar e, por isso, tem necessariamente de estabelecer acordos com empresas de outros países. Por exemplo, se tiver um contencioso com uma entidade da Arábia Saudita, provavelmente, por razões óbvias, não vai querer que corra uma ação num tribunal daquele país. Então, recorre a uma instância internacional onde pode sentir-se ao mesmo nível. Essa experiência além-fronteiras tem muitas vantagens, dá-nos uma dinâmica muito boa. Os contactos internacionais garantem sempre abertura de espírito, conhecimento, capacidade para estar ao mais alto nível…
Contactar com árbitros estrangeiros, com diferentes experiências e pontos de vista é outra vantagem?
Exatamente. Tenho trabalhado neste tipo de processos com advogados de vários países, por vezes em processos que estão a ser acionados em vários sítios do mundo em simultâneo, e isso permite-nos ganhar capacidade de nos adaptarmos. E, depois, ainda consigo fazer a “ponte” com a Academia, pois tudo o que aprendemos quando interagimos com colegas franceses, espanhóis, norte-americanos, ingleses ou suíços permite-nos abrir as nossas cabeças, permite-nos gerar soluções inovadoras que, depois, podemos aplicar na universidade e nos tribunais portugueses. Essa interação prática é sempre positiva. No meu caso, com aquilo que tem sido esta experiência internacional, acho que faço muito bem essa ligação entre prática e teoria. Chego à conclusão que só tendo a perceção da teoria ou da prática torna-se mais difícil encontrar uma solução correta ou justa, ora porque não se percebem os fundamentos, ora porque não se percebem os acontecimentos no terreno. É preciso haver um equilíbrio, que nem sempre é fácil de alcançar.
Portugal começou a ser cada vez mais procurado para processos de arbitragem. Qual a razão?
Acho que há dois fatores fundamentais: por um lado, a força da arbitragem em língua portuguesa, essencialmente, por causa do Brasil e dos países africanos de língua oficial portuguesa. Mas, sobretudo, por causa do Brasil. O Brasil necessita de árbitros que saibam falar em português e isso leva a uma procura por Portugal. E também já começam a ser criadas associações de arbitralistas lusófonos que contribuem para este fenómeno; depois, há também a perceção que Portugal é um local neutro, uma noção absolutamente essencial na arbitragem. Se olharmos para os grandes centros de arbitragem no mundo falamos de Londres, Paris, Suíça – que tem essa lógica de neutralidade –, Nova Iorque, Singapura e também Hong Kong (embora esta última agora menos solicitada devido às questões com a China). São sempre locais que são considerados neutros e, de alguma forma, sofisticados no sentido de terem comunidades jurídicas de advogados e de árbitros com experiência internacional e capacidade técnica. E nós em Portugal começamos, de facto, a ganhar essa reputação, graças ao esforço que tem sido feito pelas pessoas que atuam nesta área. A ideia é que as arbitragens que se fazem em Portugal sejam iguais, em termos de competência e eficiência, àquelas que se fazem nesses grandes centros.
É curioso essa leitura numa fase em que a Justiça em Portugal tem sido alvo de tantas críticas…
Tivemos algumas questões, de facto, mas somos um Estado de Direito democrático que respeita o chamado rule of law. Ou seja, respeitamos as regras que temos independentemente de, às vezes, existirem dúvidas sobre a interpretação das mesmas em cada caso concreto. A verdade é que em Portugal as instituições respeitam o Estado de Direito e funcionam e a nossa Justiça – que tem problemas, evidentemente – é reconhecida em rankings internacionais por ser isenta, independente e imparcial. Podem existir, às vezes, questões de eficiência, mas o sistema tem vindo claramente a corresponder às expectativas.
Existe a ideia de que a arbitragem, principalmente a partir de determinado patamar, tem custos muito elevados. É mesmo assim?
Não. A arbitragem de valores muito elevados compara bem com as custas nos tribunais, que hoje em dia também são muito elevadas. Em processos mais baixos, de facto, uma arbitragem comercial será mais cara do que um processo judicial. Mas a arbitragem, dentro da sua flexibilidade, que é uma das suas grandes vantagens, também se tem desenvolvido, com grande sucesso, nas áreas do consumo, onde é gratuita, financiada pelo Estado, e consegue ser uma porta de acesso à Justiça muito eficiente. No fundo, é isto. A arbitragem é apenas um mecanismo de acesso à Justiça, numa lógica de diversidade. A Justiça não pode, aliás, ter apenas uma porta de acesso (normalmente a dos tribunais), mas constituir-se por várias portas, cada uma com as suas características, os seus custos e as suas abordagens próprias. Seja arbitragem, mediação, julgados de paz… São todos mecanismos que se enquadram numa lógica de “casa da Justiça”, que não se esgota no tribunal, mas em que o tribunal é apenas uma das suas “salas”. Portugal e toda a Europa têm feito esse caminho, que permite maior igualdade, melhorar o acesso à Justiça, pois sabemos – e há estatísticas globais que o comprovam – que menos de metade da população tem acesso à Justiça, porque é cara, porque as pessoas desconhecem os seus direitos… E todos os mecanismos que garantam essa igualdade e esse acesso, que deem uma resposta aos cidadãos, são boas soluções. A arbitragem é apenas um desses exemplos.
Foi através do contacto com profissionais estrangeiros que percebeu o potencial destes mecanismos e adquiriu estas convicções?
Sou da opinião que só há inovação se houver exposição a ideias novas. Acho que a criatividade vem da diversidade de experiências que as pessoas têm na vida e, por isso, é muito difícil – e sinto isso quando falo com pessoas que só trabalham em Portugal – para alguns profissionais perceberem que existem outras maneiras para fazer as mesmas coisas. Por exemplo, há muitas formas de inquirir uma testemunha em tribunal e produzir a prova testemunhal, mas se uma pessoa só trabalhou em Portugal, se só viu uma maneira de fazê-lo, tudo o resto não existe.
Mas não é precisamente esse um dos grandes obstáculos da Justiça portuguesa? Uma visão mais conservadora, normativa…
Tenderia a concordar, mas acho que o problema não está tanto na Justiça, mas mais nas faculdades de Direito ou, principalmente, na falta de um determinado género de investigação jurídica no país. Ensina-se e investiga-se em Portugal da mesma maneira há vários anos. Tradicionalmente, os juristas abrem o Código e começam a divagar sobre um artigo, o que é algo que do ponto de vista da sociedade e da evolução dos sistemas tem muito pouco interesse. Portanto, temos de olhar para a investigação em Direito e é preciso que haja um investimento grande neste setor – é preciso uma investigação diferente, multidisciplinar, focada nos problemas que existem, que não seja uma coisa filosófica, mas acima de tudo concreta, para as pessoas, acessível e que dê resultados. Ainda agora estamos a fazer um outro projeto deste género sobre a insolvência – que sabemos que é uma área que já está a “disparar” –, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia com valores muito elevados, com dez pessoas a trabalhar (economistas, sociólogos, juristas). E isso tem sido feito com uma colaboração fantástica do Ministério da Justiça, que nos forneceu uma base de dados com 200 mil processos de insolvência para trabalhar, e vai permitir-nos identificar, na área da insolvência, os problemas de forma científica, chegar a conclusões concretas. Ainda no outro dia estávamos numa discussão de grupo sobre uma matéria em que há imensa doutrina, imensos professores e académicos a discuti-la, e chegámos à conclusão que essa matéria não tem relevância nenhuma na prática porque não há um único processo em que a mesma tenha aparecido. É através dessa investigação, que tem de ser multidisciplinar, internacional, que vamos conseguir alcançar uma visão completamente diferente, que possa contribuir para soluções concretas.
Dá aulas desde 2003 na Universidade Nova. Aplica essa abordagem inovadora na relação com os seus alunos?
Não falo só por mim, mas por todos os meus colegas da Nova. A Nova, quando foi fundada, em 1997, pelo professor Freitas do Amaral, tinha um peso gigante ao nível da inovação, pois ele trouxe para Portugal tudo o que tinha visto e experimentado nos Estados Unidos da América – uma inovação grande ao nível dos conteúdos. Nunca se ensinaram coisas que não têm relevância nenhuma ou que os alunos depois não possam usar. E depois também houve uma grande inovação pedagógica no modelo que existia até então – e que ainda existe em muitas faculdades e não apenas em Direito – e que é o modelo centrado no professor. O professor que está lá a mostrar aos alunos que sabe imensas coisas (risos). E nem sequer pode ser questionado. O professor Freitas do Amaral e todas as outras pessoas que criaram a Nova queriam exatamente o oposto disso e há alunos desses primeiros anos que se lembram dele a tirar o casaco, a arregaçar as mangas e a estar ali no meio dos alunos. O nosso ensino do ponto de vista pedagógico foi sempre completamente interativo. Eu nunca dei uma aula aqui em que estivesse a falar não sei quanto tempo… Isso nunca acontece, há sempre uma troca de ideias. O que fazemos, normalmente, é enviar aos alunos os materiais e questões que eles têm de ler e resolver e, depois, as aulas servem exatamente para discutir em função desses materiais, discutir casos concretos. É uma discussão permanente. É precisamente aquela ideia de conciliarmos teoria e prática. E isso não é algo meu, mas da Universidade Nova. Nesta instituição existe sempre a preocupação de estimular o pensamento crítico dos alunos, de lhes dar as “ferramentas” para pensarem por si próprios e, ao mesmo tempo, de lhes dar uma base teórica, que é muito importante. E o Direito também tem muita técnica: discutimos e falamos, mas há muita técnica e disso não podemos fugir e também temos de transmitir aos alunos. E depois também temos disponibilidade para os alunos, que é algo que nos modelos centrados nos professores não existe. Aqui estamos disponíveis para os alunos, e muitas vezes até lhes digo isso: a única razão para estar aqui é porque vocês existem. Os alunos devem ter acesso aos professores e falar o que quiserem. É uma ideia de serviço permanente, de conduzir os alunos no seu caminho de aprendizagem e não um exercício egocêntrico de valorizar o professor, não é nada disso. Queremos garantir que eles têm uma sustentação teórica que os torna capazes de resolverem qualquer problema prático, porque os problemas vão estar sempre a mudar. Basta ver que quando era estudante não aprendi uma única linha sobre arbitragem, porque, simplesmente, isso não era ensinado naquela altura.
A tecnologia veio dar um contributo a essa forma diferente de ensinar?
Quando comecei a dar aulas, os alunos estavam sentadinhos na mesa com um caderno e uma caneta, agora, se assistir a uma aula, não deve haver um aluno sem computador. Há uns dois ou três anos, numa aula, perguntei quantos tinham caderno e numa turma de 100 alunos levantaram a mão talvez dois ou três. É uma questão geracional. Por vezes, estamos a falar de determinada coisa e eles já pesquisaram na internet. Falo de um decreto-lei e dizem-me logo: “Sim, já estou aqui a ver”. É uma dinâmica diferente. Ainda agora, com a pandemia, quando tivemos de mudar do presencial para o online de um dia para o outro, acabou por não ser difícil pois já toda a gente tinha essa dinâmica. E realmente as coisas correram bem. Ao nível dos conteúdos, também introduzimos há dois ou três anos a tecnologia enquanto tema jurídico no nosso programa – ensinamos programação para juristas e temos também uma cadeira obrigatória de Direito e Tecnologia na licenciatura, que tem precisamente a ver com a preparação dos alunos para o futuro e dar-lhe as tais “ferramentas”. Claro que não vão sair daqui a programar, a ideia não é essa, mas permite-lhes perceberem e acompanharem as transações digitais que estão a ocorrer na Justiça e não só.
Disse que os filmes e as séries a atraíram para o Direito. Ainda lhe chegam alunos inspirados pela TV? Criou e tem coordenado o mestrado em Direito Forense e Arbitragem. É uma área que atrai os jovens?
Nunca fizemos inquéritos formais, mas tenho a ideia que a maioria dos nossos alunos tem sempre presente as duas carreiras mais tradicionais no Direito: a magistratura e a advocacia. E temos disciplinas muito vocacionadas para juízes e advogados. Na licenciatura e nos mestrados temos também muita gente que quer seguir uma carreira internacional, porque, de facto, temos essa dimensão ao nível das faculdades de Direito. Há muitos alunos que querem seguir carreira diplomática ou trabalhar em organizações internacionais. E depois há sempre uns que não sabem bem o que querem (risos). Direito é um curso que abre muitas portas, que em termos de imagem social todos conhecem, e costumo dizer que saindo daqui com uma licenciatura os alunos têm todas as portas abertas, podem fazer o que quiserem e onde quiserem.
Colaborou com o Ministério da Justiça no processo da reforma da ação executiva. Como foi essa experiência?
A reforma da ação executiva, como qualquer grande reforma, teve alguns problemas de arranque e esta foi, de facto, uma reforma “à séria”. Os problemas – que eram, essencialmente, tecnológicos – foram depois corrigidos. Gostei muito de trabalhar no Ministério, tinha acabado de me doutorar, era muito novinha, mas foi muito interessante porque sinto que tenho a visão da Academia, tenho a visão da advocacia, até talvez do juiz, como árbitra, mas também da Administração Pública. Sou uma cientista social nesse sentido, gosto de analisar os sistemas de “helicóptero”, olhando de cima, de perceber o que não funciona, onde estão os problemas, como se podem “desembrulhar” as coisas, e isso é um bocadinho a visão do Ministério da Justiça, uma visão de gestão. E por isso foi muito interessante trabalhar nesse projeto. Comecei como assessora no gabinete da ministra [Celeste Cardona], depois passei para o Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, como se chamava, que é a Direção-Geral da Política Legislativa da Justiça (DGPJ), e depois para o Gabinete de Auditoria e Modernização, que, entretanto, foi extinto e as suas funções passaram para a DGPJ, que tinha a função de planear e monitorizar as grandes reformas. O que fizemos, na altura, foi acompanhar a implementação da reforma da ação executiva e do contencioso administrativo, em 2003. E é realmente impressionante percebermos como é difícil reformar (risos). É mesmo muito difícil, pois está sempre tudo contra. Mesmo quem diz que está a favor, na verdade não está. Obviamente que são processos que causam muitas entropias, o que é natural quando se faz uma mudança gigantesca, e é normal que as pessoas não estejam articuladas e tudo se torne muito complicado. Na ação executiva ninguém podia esperar que, colocando um elemento novo – que é o agente da execução (na altura designava-se solicitador da execução) – a fazer uma série de tarefas que antes pertenciam aos juízes e à secretaria judicial, no dia seguinte estivesse tudo a funcionar bem. Não estava e, às vezes, sentia-me uma espécie de “bombeira” a ir “apagar fogos”. Mas foi um exercício muito interessante para perceber certas dinâmicas. O facto de sermos académicos é uma grande vantagem para podermos propor algumas coisas “meio doidas”, salvo seja, mas que são muito inovadoras, porque não temos de implementá-las, embora essas propostas depois vão gradualmente provocando a mudança. É muito engraçado porque quando sugerimos soluções muito criativas, que sabemos serem muito difíceis de implementar, sabemos que, normalmente, o que vai ser implementado fica a meio termo, o que já é muito bom face ao que existia. E para mim isso é muito interessante.
A reforma da ação executiva é disso exemplo?
Exatamente. Antes não se penhorava nada aos devedores e agora não é assim. Se as pessoas tiverem bens, uma casa, um carro, pode demorar um bocadinho a vender, mas a Justiça tem agora meios para que os devedores possam pagar.
Qual é o principal problema da Justiça que tantas reformas ainda não conseguiram resolver?
A Justiça é uma coisa gigantesca. O que salta para os media, regra geral, é a parte penal, do crime, são os casos mais mediáticos, os casos de homicídio… A minha opinião é que deveríamos começar a criar um sistema ao lado, um projeto-piloto na Justiça, para podermos testar soluções completamente diferentes daquelas que existem atualmente. A minha posição académica, com base em leituras e estudos que tenho feito é esta. Não é o sistema que é mau, mas o sistema já chegou a um ponto… mesmo Citius, do ponto de vista tecnológico, é um software feito em cima de um regime do século XIX.
Fala de um projeto-piloto para a Justiça. Li recentemente que escreveu num artigo de opinião que “precisamos apostar mais nos resultados e menos no processo”. O que quer dizer com isso?
A lógica é a do Richard Susskind, um pensador britânico na área jurídica, que diz que quando o cidadão procura a Justiça quer uma decisão do seu problema em tempo útil – designa esse conceito por outcome-thinking ou pensar no resultado. É isso que tem de ser o nosso pensamento: esquecer o processo e focarmo-nos no resultado. As pessoas, por exemplo, no crime, querem uma resolução rápida para o acusado seja ele inocente ou culpado. E pensar no resultado é também tentar perceber como é que chegamos a esse momento: com arbitragem, mediação, com um processo judicial todo online… Se calhar há questões que nem precisam de um tribunal. Essa é uma das perguntas que o Susskind faz: o tribunal é um lugar ou um serviço? Se é um lugar então é preciso existir, mas se é um apenas um serviço, então, se calhar podemos desconstrui-lo e começar a pensar naquilo que o cidadão quer enquanto resultado independentemente do lugar onde a questão é tratada, escolhendo antes a forma mais adequada e rápida. Claro que não estamos a falar de um caso como o processo da Operação Marquês, mas em casos mais simples, se calhar, um processo completamente online, com procedimentos ultra simplificados, sem ser necessário ter visibilidade… Por exemplo, se temos um caso em que se discutem erros de construção na ponte Vasco da Gama – que foi uma arbitragem que fiz há uns anos – podemos dar uma resposta diferente, não faz sentido esta situação ser resolvida da mesma maneira que um processo de outra natureza. Outro exemplo: um litigio entre vizinhos. Não é melhor tratar o caso de forma que permita restabelecer a confiança e a comunicação entre os vizinhos, do que esperar por uma solução que demora cinco ou seis anos a chegar? Já depois de, se calhar, as relações se terem agravado, terem metido caçadeiras. Um das coisas que o Susskind diz é que a Justiça também tem de ter “ferramentas” que impeçam a escalada do litígio, não basta resolvê-lo. Também tem de saber ter esta intervenção e, por isso, é preciso ter a consciência que o acesso ao Direito tem imensas opções.
E como entra nesta lógica o conceito de projeto-piloto, sem alterar o sistema por completo, criando as tais entropias que referiu?
O Susskind diz que não é possível mudar a roda de um carro com ele em andamento, é a alegoria que ele utiliza. Portanto, temos de construir um carro ao lado, muito pequenino, o tal projeto-piloto. E isso até já se fez aquando do regime processual experimental. Participei nesse projeto e, na altura, tínhamos um regime processual que só se aplicava em quatro comarcas do país. A partir de certa altura, quando se tornou percetível para todos que aquilo estava a funcionar bem, foi adotado como solução para o país inteiro. É esse o meu ponto de vista: fazer projetos-piloto em que se esqueçam todas as regras, a partir do zero, e construir a partir daí tendo em vista o resultado e aquilo que o cidadão quer.
E estamos perto que isso possa acontecer?
Infelizmente, acho que não. Participei há pouco tempo numa sessão pública com a presença dos ministros da Justiça, da Economia. Para ser muito honesta, sinto que este Governo não tem um grande espírito reformador…
Essa falta de investigação para que se possa apostar mais no resultado explica, por um lado, a desconfiança com que os portugueses hoje olham para a Justiça? Sobretudo na sequência da leitura da instrução da Operação Marquês…
Haver uma distância tão grande entre o que o cidadão espera e o resultado… É algo que tem de ser refletido pelos Governos e pela própria sociedade civil. Infelizmente, as respostas, normalmente, não são as mais adequadas. E, volto a insistir, apenas por falta de investigação. Essa carência não permite dar respostas adequadas àquilo que são os problemas da Justiça e do país. Se pensarmos bem, qual é o trabalho sobre Justiça penal, a fundo, que tenha sido feito em Portugal nos últimos anos, sobre questões processuais, sobre as condições de trabalho dos juízes, dos oficiais de justiça, do Ministério Público… não existe nada. O meu espírito de cientista diz-me sempre que é preciso analisar, calma e seriamente, os problemas. Se vamos intervir sem base teórica, normalmente, vamos intervir mal. Para isso, mais vale estar quieto. E, com tempo, debruçarmo-nos sobre as questões, identificarmos os problemas, testarmos as soluções, e só assim os problemas são resolvidos. As pessoas têm que perceber que a investigação em Direito é a mesma coisa que a investigação em biotecnologia. Não tem laboratórios ou ratos, mas é cientifica.
Com tantas ideias… Não pensa em contribuir do ponto de vista político para uma solução?
Ainda terei, certamente, muitos anos para trabalhar. Neste momento estou muito concentrada na Academia e na advocacia e acho que tenho dado o meu contributo, e continuo a dar, primeiro, na formação das futuras gerações, e, depois, ao nível da investigação. Agora, por exemplo, temos em mãos o grande projeto que já referi, sobre a insolvência, em parceria com o Ministério da Justiça. Estamos a trabalhar para termos um papel importante nas reformas que têm de ser feitas nessa área devido à alteração das diretivas da União Europeia, nos próximos anos. Acho, por isso, que já dou um contributo importante. Gosto de o fazer e acho também que é a minha obrigação como cidadã. Na minha área, normalmente, tenho uma palavra a dizer, e sempre que ma pedirem vou dá-la.