A bazuca, a levitação e o transístor

A bazuca, a levitação e o transístor


Muitos dos desafios que se colocam à nossa sociedade e no nosso dia-a-dia, da saúde à energia, só podem ser ultrapassados com mais ciência e com as invenções e a tecnologia que a ciência proporciona.


Na semana passada, o Conselho Europeu de Investigação celebrou o seu galardoado número 10.000 cientistas financiados (a galardoada foi Inga Berre, matemática da Universidade de Bergen, Noruega). Este número redondo foi uma oportunidade para mostrar todos os avanços científicos, equipas e novos equipamentos financiados desde que este Conselho foi estabelecido em 2007. O exemplo paradigmático é Uğur Şahin, um dos cientistas fundamentais para as vacinas baseadas em mRNA da Pfizer-BioNTech, financiado com uma “Advanced Grant”. Estes sucessos, e este modelo, devem servir também para nos ajudar a discutir as opções para a famosa bazuca, ou Plano de Recuperação e Resiliência e refletirmos que Ciência queremos nos próximos dez anos.

Um ponto parece ser consensual: a dimensão da comunidade nacional (nomeadamente em termos de instituições do sistema científico), a capacidade demonstrada e as expectativas criadas para as novas gerações “exigem” que o objetivo de atingir, pelo menos, 3% do PIB investido em ciência até 2030 seja cumprido. Este valor é até modesto e os tempos que vivemos demonstram até à exaustão o aforismo da filantropa Mary Lasker “If you think research is expensive, try disease!”. Existem convicções menos fortes relativamente ao caminho para atingir este objetivo de financiamento para a ciência. Não sendo expectável atingir este objetivo sem uma (forte) componente privada como deve orientar-se a componente pública? Reproduzir o espírito do Conselho Europeu de Investigação, financiando investigação de horizontes totalmente abertos, que eventualmente consiga gerar valor económico para atingirmos o alvo de 3% ou focar o investimento público em agendas de investigação específicas e direcionadas para desafios/objetivos com forte potencial para impacto económico ou social?

A resposta não é simples e podemos encontrar exemplos em favor dos dois modelos. Do lado da criatividade e curiosidade sem fronteiras, gosto do exemplo de Andre Geim, Prémio Nobel da Física de 2010 e das suas Experiência Noturnas das Sextas-Feiras. Nestas experiências explora novas direções e ideias aparentemente pouco convencionais. Numa dessas sessões, Geim fez levitar um sapo como demonstração das propriedades magnéticas da água, pelo qual recebeu o Prémio IgNobel de 2000 [1], prémio que distingue resultados científicos “…that first make people laugh, and then make them think”. Foi também nestas experiências de sexta-feira que descobriu como produzir uma camada bidimensional de átomos de carbono, com a espessura de um apenas um só átomo – o grafeno – um material com propriedades mecânicas e elétricas únicas e potencial para inúmeras aplicações, com um valor de mercado previsto de mil milhões de dólares em 2027.

Um exemplo em sentido oposto, de investigação dirigida para objetivos específicos (que irei designar por mission driven), são os Bell Labs, berço da eletrónica moderna, onde foi inventado o transístor e que geraram oito prémios Nobel. Muitos desafios da ciência moderna e da sociedade moderna, como as alterações climáticas, a transição energética ou o combate a epidemias, só podem ser ultrapassados numa perspetiva mission driven com recursos concentrados e dirigidos, combinando financiamento público e privado, em que a descoberta científica e as invenções de novas soluções estejam intimamente ligadas.

A minha estimativa é que a maior parte do sistema científico nacional responsável pelos sucessos dos últimos 30 anos da ciência nacional é movida pela curiosidade (curiosity driven), sendo fundamental garantir e reforçar os sucessos já alcançados. Mas os nossos concidadãos esperam também que os seus impostos investidos em ciência contribuam para a melhoria das suas condições de vida, por exemplo através de políticas públicas baseadas na evidência e do desenvolvimento económico.

A diversidade, neste caso de organizações e de objetivos, é aqui fundamental e é importante a combinação virtuosa entre curiosidade e missão, entre descoberta e invenção. As duas perspetivas não são incompatíveis, como bem demonstrado nos Laboratórios Bell e devem ser fomentadas, como defende Venkatesh Narayanamurti da Universidade de Harvard [2], para criar um ciclo virtuoso entre descoberta e invenção. Isto envolve, em primeiro lugar, desenvolver novas instituições sem divisões artificiais entre disciplinas ou entre investigação fundamental/aplicada capazes de, pela liberdade concedida, recursos disponíveis e ambiente intelectual, atrair talento excecional. Em segundo lugar, financiar projetos de investigação que ultrapassem as barreiras disciplinares e promovam a colaboração de cientistas de campos diversos para resolver problemas desafiantes.

Muitos dos desafios que se colocam à nossa sociedade e no nosso dia-a-dia, da saúde à energia, só podem ser ultrapassados com mais ciência e com as invenções e a tecnologia que a ciência proporciona. Mas, simultaneamente, precisamos também do deslumbramento da descoberta, da prosaica levitação da água (e dos sapos) ou de um novo exoplaneta, para desafiarem a nossa tecnologia e nos inspirarem tal como as descobertas científicas têm conseguido de Galileu até aos nossos dias.

Professor Catedrático do Departamento de Física

Instituto Superior Técnico

web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/

twitter: @luis_os

[1] Andre Geim é o único cientista que já recebeu o Prémio Nobel e o IgNobel

[2] V. Narayanamurti & T. Odumosu, Cycles of Invention and Discovery, Rethinking the Endless Frontier, Harvard University Press 2016