Os biocombustíveis líquidos avançados e as leveduras

Os biocombustíveis líquidos avançados e as leveduras


As leveduras oleaginosas são, presentemente, alvo de intensa investigação internacional como promissoras produtoras de lípidos alternativos para uma indústria de biodiesel mais sustentável.


O contributo dos biocombustíveis líquidos como alternativa aos derivados do petróleo é fundamental para cumprir as metas de descarbonização pois o setor dos transportes é uma das principais fontes de emissão de gases com efeito de estufa. O bioetanol e o biodiesel são os mais comuns, ambos representando, maioritariamente, a tecnologia de primeira geração (1G) por serem produzidos a partir de culturas alimentares. A transição para os biocombustíveis avançados (2G), produzidos a partir da biomassa lenhocelulósica e resíduos agrícolas, florestais e industriais, permitirá cumprir critérios de sustentabilidade e beneficiar as economias rurais. Este artigo vem na sequência do publicado neste jornal em 16/03/2021 e é dedicado às leveduras enquanto reais ou promissoras microfábricas celulares para a produção sustentável de biocombustíveis líquidos.

A indústria do bioetanol 1G já demonstrou a sua viabilidade, assente na fermentação alcoólica de culturas alimentares com amido (milho, trigo) e açucareiras (cana-de-açúcar, beterraba) pela eficiente levedura do padeiro e do vinho. É o biocombustível mais usado como agente de mistura com a gasolina sendo os EUA o maior produtor, seguido pelo Brasil e de longe pela UE. Embora já haja biorrefinarias em operação, o bioetanol 2G continua a enfrentar dificuldades, nomeadamente por requerer o pré-tratamento da biomassa lenhocelulósica para a libertação dos açúcares fermentáveis. Durante essa desconstrução são gerados compostos tóxicos que inibem o metabolismo das leveduras o que acrescenta outro desafio à necessidade de fermentar um outro tipo de açúcar (a pentose xilose que a referida levedura não utiliza naturalmente) e aos desafios típicos da produção de etanol 1G.

As leveduras oleaginosas são, presentemente, alvo de intensa investigação internacional como promissoras produtoras de lípidos alternativos para uma indústria de biodiesel mais sustentável. De facto, a multiplicação destas leveduras é relativamente rápida, a sua produção biotecnológica é fácil e independente do efeito sazonal ou climatérico e não requer vastas terras aráveis. Algumas espécies podem utilizar uma vasta gama de matérias-primas renováveis, o teor em lípidos é elevado em condições otimizadas, e são robustas. Na imagem junta são visíveis gotas de óleo acumulado durante a multiplicação de duas leveduras em hidrolisados de polpa de beterraba sacarina, um subproduto da indústria açucareira. Ambas produzem carotenoides (pigmentos naturais) que dão cor avermelhada às suas colónias e uma delas produz ainda um promissor polissacárido extracelular do que resulta o aspeto mucoso. Embora o resíduo de beterraba sacarina não tenha hoje significado em Portugal, tem-no na Europa e esta investigação resultou de um projeto EraNet. No entanto, esta valorização de outros resíduos ricos em pectina, como os do processamento de citrinos e outras frutas, é promissora sendo estas biomassas residuais, devido ao processamento industrial, de mais fácil pré-tratamento do que a igualmente promissora biomassa lenhocelulósica.

A substituição dos combustíveis convencionais para transportes por biocombustíveis exigirá a produção eficiente do todo o espectro de combustíveis, em particular os adequados a veículos pesados, navios e aviação, bem como do desenvolvimento de bioprocessos economicamente competitivos e ambientalmente sustentáveis pelo uso eficiente de diversas biomassas residuais. Dar resposta a estes desafios está hoje facilitado pelos notáveis desenvolvimentos das biociências e biotecnologias que alimentam uma nova onda de inovação. A fácil sequenciação de genomas completos, a exploração da genómica funcional e comparativa e de técnicas para alterar genes e genomas com maior rapidez e precisão, de novos bioprocessos por medida apoiados na biologia sintética e engenharia metabólica para otimização de vias de regulação e do metabolismo endógeno e redirecionamento de vias metabólicas ou (re)construção de metabolismos, são instrumentais. Vários são já os sucessos descritos na literatura científica recente, por exemplo, o desenvolvimento por engenharia genética de levedura produtora de relativamente elevadas concentrações de isobutanol que, como biocombustível, apresenta melhores características que o etanol. A bioprodução eficiente de combustíveis para aviação, a partir de diversos substratos, envolve também a seleção de leveduras e manipulação de seu metabolismo para o desenvolver e aprimorar. Nas próximas décadas, o impacto económico da Biorrevolução envolverá também a área da Bioeconomia considerada um pilar da transformação da atividade produtiva com vista à descarbonização e à aplicação de uma economia circular, com vários países a definirem planos estratégicos para a área.

A estirpe de levedura e as condições fisiológicas apropriadas a cada processo específico de produção de biocombustível a partir de determinada biomassa influenciam, diretamente, a sua produtividade e economia. A superioridade do desempenho inclui a utilização rápida e eficiente da biomassa, um metabolismo de exceção para elevada produção do biocombustível e menor produção de subprodutos sem interesse e maiores níveis de tolerância aos múltiplos stresses presentes. Por razões históricas, Portugal tem massa crítica e é competitivo internacionalmente na investigação em leveduras. Se devidamente aproveitada, nomeadamente no contexto de laboratórios colaborativos, essa valiosa competência poderá alavancar a inovação e o desenvolvimento e implementação da produção de biocombustíveis líquidos avançados por estas microfábricas celulares.

Professora Catedrática do Instituto Superior Técnico e iBB-Instituto de Bioengenharia e Biociências/ i4HB-LA Instituto para a Saúde e a Bioeconomia