A confiança na Justiça


A Justiça não se faz na praça pública, em julgamentos populares, faz-se nos tribunais, assegurando-se aos arguidos todas as garantias de defesa, de acordo com as regras estabelecidas no nosso processo penal.


A repercussão pública que está a ter a decisão instrutória no âmbito da Operação Marquês, que levou inclusivamente a uma petição pública a solicitar o afastamento de um juiz da magistratura, constitui um sinal preocupante da desconfiança dos cidadãos nas instituições em geral e na Justiça em particular.

Em primeiro lugar, há que repudiar e condenar totalmente este tipo de iniciativas. A Justiça não se faz na praça pública, em julgamentos populares, faz-se nos tribunais, assegurando-se aos arguidos todas as garantias de defesa, de acordo com as regras estabelecidas no nosso processo penal. Essas regras impõem que qualquer acusação do Ministério Público tenha que ser validada por um juiz numa decisão instrutória, depois de ouvir, não só a versão do Ministério Público, mas também a versão da defesa. É por isso perfeitamente normal que o juiz de instrução, na sua decisão, não concorde integralmente com a acusação do Ministério Público, pronunciando ou despronunciando os arguidos, consoante entenda existirem ou não indícios suficientes nos autos.

Mas para que o juiz possa decidir os processos que lhe são submetidos de forma independente e livre de quaisquer pressões é absolutamente necessária a garantia de que não sofrerá consequências pessoais em virtude da sua decisão. Por isso, o art. 216º, nº1, da Constituição estabelece que os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei. Por esse motivo não faz qualquer sentido a apresentação de petições públicas a solicitar o afastamento de um juiz da magistratura. Ainda que assinassem essa petição milhões de pessoas, continuaria a ser imperativa a aplicação da Constituição, que consagra em absoluto a inamovibilidade dos juízes.

A consagração constitucional da inamovibilidade dos juízes justifica-se em virtude de um triste episódio ocorrido em Portugal. Logo a seguir à implantação da República, o ministro da Justiça do Governo Republicano, Afonso Costa, decidiu processar no Tribunal da Relação de Lisboa o antigo primeiro-ministro João Franco por violação da Carta Constitucional da Monarquia. Os juízes desembargadores da Relação de Lisboa acharam o processo absurdo, na medida em que, tendo o acusador violado ele próprio a Carta Constitucional da Monarquia, já que tinha derrubado o regime monárquico, não fazia qualquer sentido vir depois mover um processo a um antigo governante por desrespeitar essa mesma Carta Constitucional. Por isso recusaram-se a julgar procedentes essas acusações contra João Franco. Indignado com essa decisão, Afonso Costa determinou, através do Decreto de 21 de Dezembro de 2010, que os quatro desembargadores da Relação de Lisboa que a tomaram fossem compulsivamente transferidos para a Relação de Goa, a mais de 8.000 km de distância. Esses juízes desembargadores sofreram assim gravíssimas consequências pessoais, em virtude da decisão judicial que tomaram, mas souberam honrar a sua beca, não se vergando às pressões do poder político, nem da opinião pública.

É por isso inaceitável o surgimento no Portugal de 2021 de petições a solicitar o afastamento de um juiz por causa das decisões que tomou num processo. Tal é, no entanto, um sintoma de uma séria desconfiança dos cidadãos no sistema judicial, que torna absolutamente necessária uma reforma profunda do mesmo. A justiça penal portuguesa não pode continuar a funcionar com a lentidão que a caracteriza, que ainda é mais agravada no caso dos megaprocessos, em que se pode levar quatro anos a proferir uma acusação e mais dois a elaborar um simples despacho instrutório. Tal contribui para gerar um sentimento de impunidade, que não se combate com a aprovação de documentos vagos, mas sim com um efectivo reforço da investigação criminal, com o aumento dos recursos para a mesma. É também necessária a abolição deste modelo absurdo de termos um Tribunal Central de Instrução Criminal apenas com dois juízes, o que contribui para uma absolutamente indesejável fulanização da Justiça.

É mais que tempo de o poder político abandonar o total alheamento em que se colocou em relação à Justiça, e adopte medidas que permitam aos cidadãos voltar a ganhar confiança no seu funcionamento.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção

das regras do acordo ortográfico de 1990