Por Felícia Cabrita e João Amaral Santos
A expectativa deve-se ao tempo que Ivo Rosa demorou a chegar a uma conclusão e também à circunstância de, em diversos processos alusivos a crimes de colarinho branco, as suas decisões terem desvalorizado – ou ignorado mesmo – as chamadas provas indiretas e terem contrariado sistematicamente as posições dos acusadores públicos.
Em relação ao mais destacado arguido da Operação Marquês, o ex-líder socialista e ex-primeiro-ministro José Sócrates – acusado de corrupção passiva de titular de cargo político, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento –, o juiz de instrução terá de tomar uma de três opções: um despacho de não-pronúncia, mandando arquivar todas as acusações contra o antigo chefe do Governo; um despacho de pronúncia que acompanhe ipsis verbis o libelo acusatório do Ministério Público (MP), remetendo o antigo governante para julgamento; ou um despacho de pronúncia apenas em relação a uma parte dos 31 crimes que os acusadores lhe imputam. Sócrates está basicamente acusado de ter recebido, enquanto primeiro-ministro, comissões ilícitas que totalizam mais de 34 milhões de euros, as quais, para despistar o nome do verdadeiro beneficiário, terão sido depositadas em contas na Suíça em nome, primeiro, do seu primo José Paulo Pinto de Sousa e, depois, do seu amigo Carlos Santos Silva, empresário da área da construção civil (ambos também arguidos). Os dois são considerados pelo MP ‘testas-de-ferro’ do ex-líder socialista.
Parte significativa dessa verba acabou por ser transferida por Santos Silva para Portugal ao abrigo de uma das duas operações RERT (Plano de Regularização Excecional e Temporária) aprovadas pelo Governo do próprio Sócrates para recuperação de capitais nacionais depositados no estrangeiro, isentando-os da quase totalidade do imposto devido, sendo ponto assente pelos investigadores judiciais e tributários que o antigo primeiro-ministro usou sempre esse dinheiro a seu bel-prazer.
As acusações de fraude fiscal e branqueamento de capitais poderão não suscitar grandes dúvidas a Ivo Rosa (que, aliás, até aumentou o número de crimes fiscais em relação à acusação do MP), e, se as validar, assume automaticamente que o dinheiro pertencia de facto a José Sócrates, apesar de nunca ter estado depositado em contas de que era titular. Mas o que suscita interrogações é a posição do magistrado judicial perante a questão da corrupção, admitindo os conhecedores do processo a hipótese de ele não acompanhar as imputações do MP.
Em caso de não pronunciar Sócrates pelo crime de corrupção, Ivo Rosa poderá alegar ausência de provas diretas que confirmem que as verbas recebidas pelo arguido terão resultado do pagamento de favores prestados às entidades pagadoras enquanto governante. Contudo, foi diverso o entendimento da acusação que, além das provas circunstanciais (cada vez mais validadas na jurisprudência europeia relacionada com casos de corrupção), adiantam nos autos uma sucessão de dados que consideram constituir irrefutável prova direta. E são vários os elementos que o MP acredita incriminarem Sócrates.
Os negócios da PT
Em primeiro lugar, destaca-se o caso da OPA (Operação Pública de Aquisição) lançada a 6 de fevereiro de 2006, em pleno primeiro Governo de Sócrates, sobre a empresa de telecomunicações Portugal Telecom (PT) pelo grupo Sonae em aliança com a espanhola Telefónica. À operação opunha-se Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo (BES) e líder do grupo associado GES, que detinha fortes interesses na PT e temia que o negócio colocasse em causa o seu poder enquanto acionista da operadora. O MP acusa o banqueiro (também arguido na Operação Marquês) de pôr em prática um plano para travar a OPA com recurso ao primeiro-ministro, que, por sua vez, terá influenciado o seu amigo Armando Vara (igualmente arguido), ex-dirigente socialista e à época vice-presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), para que o banco público, que detinha na PT uma participação de 5,11% do capital, votasse ao lado de Ricardo Salgado contra a OPA, o suficiente para a assembleia geral dos acionistas da operadora chumbar a operação de aquisição, como de facto sucedeu a 2 de março de 2007.
A acusação alega que, por esta intervenção, Sócrates recebeu seis milhões de euros através de um complicado fluxo financeiro com origem no BES. A entidade intermediária foi a empresa Escom, do vasto universo do GES, vocacionada para atuar em Angola e noutros países africanos, e, como ‘peões’ para ocultar a origem do dinheiro, foram utilizados o seu presidente, Hélder Bataglia, residente em Luanda, e um dos seus administradores (designado por Salgado para a área financeira), Pedro Ferreira Neto (ambos arguidos e testemunhas fundamentais do processo). Está documentado nos autos que, dois meses depois de a OPA se ter tornado pública, a 27 de abril e a 9 de maio de 2006, Bataglia e Ferreira Neto receberam nas suas contas quatro transferências no total de sete milhões de euros oriundas da própria Escom. E, pouco depois, a 19 de maio, seis milhões de euros, com origem numa offshore de Bataglia, a Markwell, entraram na conta da Gunter Finance, offshore detida por José Paulo Pinto de Sousa, no banco suíço UBS, tendo o dinheiro ficado à disposição de Sócrates.
O funcionário do UBS que geria a conta da Gunter, Michel Canals, escreveu uma nota justificativa explicando que a verba de seis milhões depositada pelos homens da Escom se destinava a adquirir umas salinas em Benguela, Angola, pertencentes à família Pinto de Sousa, com vista a implantar um projeto imobiliário. Mas Ferreira Neto, ouvido pelo MP, negou que estivesse alguma vez planeado tal investimento. O administrador financeiro da Escom não adiantou porém qualquer explicação para o pagamento, mas admitiu que, por vezes, Bataglia lhe solicitava o trânsito de verbas pela sua conta bancária com destino a terceiros. Em relação aos apontamentos de Canals, o administrador explicou também que «essas notas aparecem porque o gestor tinha de justificar a operação ao departamento de compliance do banco». Ferreira Neto, que se tornaria uma relevante testemunha, revelou ainda que Bataglia lhe contara que apresentara Sócrates a Ricardo Salgado e que, quando foi anunciada a OPA da PT, voou com o presidente da Escom até ao Dubai, em finais de abril, para se encontrarem com o líder do GES e discutirem com ele a eventualidade de uma ‘contra-OPA’. Antigo vice-presidente do Banco Espírito Santo de Investimento (BESI) – e que liderava ainda a offshore Pinsong, que também seria usada por Ricardo Salgado –, Ferreira Neto admitiu mesmo em interrogatório ter sido usado como ‘peão’ de Salgado e Sócrates.
Dos seis milhões que entraram na offshore de Pinto de Sousa, 3,5 milhões foram depois transferidos para uma outra conta, também no UBS, mas titulada por Carlos Santos Silva, o qual, do mesmo modo, passou a disponibilizar ao seu amigo Sócrates todo o dinheiro que ele lhe solicitasse. A tese que o empresário apresentou ao MP ‘empurrou-o para um beco sem saída’: Santos Silva justificou o recebimento daquele montante com uma suposta associação à família Pinto de Sousa em Angola no negócio das já referidas salinas, de que seria co-proprietário, sendo essa a parte que lhe caberia em resultado da venda à Escom. Mas a explicação é contrariada pelos registos da empresa das salinas, onde nunca aparece como sócio nem como membro dos seus órgãos sociais. Também a prova testemunhal vem contrariar as justificações de Santos Silva, pois foi o próprio irmão de José Paulo, António Pinto de Sousa, que, quando interrogado, desmentiu qualquer ligação do amigo de Sócrates à propriedade dessas terras – as quais pertenciam à família mas ainda hoje se encontram abandonadas. O MP detetou ainda outra transferência, no ano seguinte à da primeira, de mais três milhões de euros que circularam entre o universo GES e a conta suíça do primo de Sócrates via Hélder Bataglia, que terão constituído um pagamento final já após o chumbo da OPA da PT.
Neste caso, a acusação procura provar que o dinheiro não é de quem o detém mas de quem efetivamente o usa. E o que é certo é que o capital acumulado na conta offshore de Pinto de Sousa acabou por ser usado, ainda nesse mesmo ano, em despesas relacionadas com pessoas da esfera mais íntima de Sócrates. A primeira transferência destinou-se mesmo a uma sua namorada, Sandra Santos, que vivia em Genebra mas que o visitava com regularidade, para despesas correntes da mãe do primeiro-ministro, Adelaide Monteiro (como, por exemplo, para pagar o ordenado da sua empregada doméstica), e também para o irmão de Sócrates, chamado (tal como um dos primos) António Pinto de Sousa. Para além disso, era o primo José Paulo quem pagava, em dinheiro vivo que levantara na Suíça, alguns luxos de Sócrates – como umas sumptuosas férias no resort Pine Cliffs, perto de Albufeira. Iniciava-se assim, do ponto de vista do MP, o processo de lavagem de dinheiro.
A decisão da PT de vender a sua participação na operadora brasileira de telecomunicações Vivo (onde estava em parceria com a Telefónica) para adquirir, no mesmo país, outra empresa telefónica, a Oi, concretizada em 2010, foi mais um negócio que o MP considerou rentável para o então primeiro-ministro. Ferreira Neto foi personagem central neste esquema, montado para, de acordo com a acusação, chegarem às mãos de Sócrates, entre 2007 e 2009, 12 milhões de euros com origem no GES. E aquando da finalização do negócio entrariam ainda mais oito milhões nas contas controladas por Santos Silva.
A Vivo era uma empresa pujante economicamente devido à expansão da sua rede de telemóveis, enquanto a Oi apostava ainda no sistema de telefones fixos, cada vez menos utilizados pelos consumidores, orientação que a haveria de colocar à beira da falência. Mas a venda da participação da PT na Vivo, devido ao elevado valor que prometia, conviria a Salgado pela liquidez que, através da operadora portuguesa, faria entrar no seu grupo, já em dificuldades financeiras. A PT acordou de início a venda da Vivo à Telefónica por 7,15 mil milhões de euros, a pronto pagamento, tendo o contrato acabado de ser assinado por 7,5 mil milhões, a prestações. Metade desse valor foi distribuído proporcionalmente pelos acionistas (com um encaixe imediato de 375 milhões de euros por parte do BES/GES), ficando o resto para pagar depois.
Detendo então o Estado português uma golden share na PT (participação qualificada que dava direito a uma palavra definitiva nas decisões estratégicas da empresa), Sócrates autorizou a venda da participação na Vivo, mas na condição de que pelo menos metade da receita fosse reinvestida no setor tecnológico brasileiro, assim se decidindo a entrada na Oi. O então primeiro-ministro, a 28 de julho de 2010, defendeu publicamente essa opção, declarando: «A defesa intransigente do interesse estratégico foi absolutamente essencial para que a PT pudesse fazer um excelente negócio». A PT adquiriu um quarto do capital da Oi, mas a gestão da operadora manteve-se nas mãos dos seus acionistas brasileiros. Altamente endividada, a Oi era já um ‘elefante branco’ com um grande buraco financeiro, e a sua salvação também convinha aos governantes brasileiros. O então presidente do Brasil, Inácio Lula da Silva, muito próximo de Sócrates, empenhara-se em resolver a situação, surgindo nesse contexto a autorização para o investimento da PT, o que de facto terá salvo a empresa mas ‘afundado’ a empresa portuguesa.
A indicação de que fora decidida pelo próprio Sócrates a utilização da golden share do Estado para obrigar a PT a entrar na Oi é dada numa escuta telefónica efetuada no verão de 2014, no âmbito da Operação Marquês, a uma conversa entre o ex-primeiro-ministro e o seu antigo secretário de Estado adjunto das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Paulo Campos. Sócrates estava então a ser criticado por elementos do Governo de Passos Coelho (seu sucessor após as eleições em 2011) como responsável pela destruição de valor da PT devido ao negócio no Brasil e pediu ao seu ex-colaborador elementos para poder responder no espaço de opinião que mantinha na RTP1. Paulo Campos disse-lhe então: «Nós recusámos, ou melhor, tu recusaste uma situação que era de perder o negócio no Brasil».
O trânsito das alegadas ‘luvas’ deste segundo negócio da PT, no total de 18 milhões de euros, tendo Sócrates como destinatário final, acabou por envolver outro protagonista, Joaquim Barroca, administrador da área de construção civil do grupo Lena, com sede em Leiria, que entretanto entrara em cena pela mão de Carlos Santos Silva. Barroca – propositadamente, como admitiu ao MP – viajou até à Suíça na companhia de Santos Silva para abrir uma conta no UBS, por onde depois passou parte das comissões ilícitas supostamente pagas ao então líder socialista. Pelo ‘favor’, Barroca terá tido como contrapartida a influência de Sócrates na atribuição de projetos públicos ao grupo Lena. Aos investigadores, Joaquim Barroca explicou que o amigo de Sócrates «prestava serviços» na construtora leiriense, para tentar justificar a proximidade financeira entre ambos, mas acabou por admitir que pelo menos parte dos 18 milhões de euros de alegadas contrapartidas da internacionalização da PT no Brasil, depositados em seu nome na Suíça, não lhe pertenciam a ele mas sim a Santos Silva. E declarou-se burlado por este usar a sua conta sem o seu consentimento.
O presidente executivo da PT à época, Zeinal Bava, o seu chairman, Henrique Granadeiro, beneficiaram também com os esquemas de Salgado, recebendo alegadamente ‘luvas’ pelo envolvimento da PT no mercado brasileiro.
Na Operação Monte Branco, uma investigação a fuga de capitais, foi detetado em janeiro de 2012 um sms enviado por Granadeiro ao líder do GES: «Ricardo, […] já recebi.». Na altura, verificou-se ter sido efetuada uma transferência de 4.852 milhões de francos suíços (cerca de 4,4 milhões de euros) da firma Enterprises Management Services, do universo Espírito Santo (uma offshore sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, considerada o ‘saco azul’ do GES), para uma conta de Granadeiro no banco suíço Pictet. Os investigadores creem que Granadeiro não terá ficado com toda a verba, mas que parte terá sido reencaminhada para Salgado.
O negócio no Brasil nunca foi, porém, pacífico, nem mesmo dentro de portas. Ao analisarem os autos da Operação Monte Branco – em que foram escrutinados, entre outros, diversos elementos da família Espírito Santo, como Salgado e o seu primo José Maria Ricciardi –, a investigação descobriu mais elementos sobre o negócio brasileiro da PT. Num sms enviado em maio de 2012 a Salgado, Ricciardi (que era contra a venda da participação na Vivo) protestava por não ter sido convidado para um jantar com Otávio Azevedo e Sérgio Andrade, responsáveis da construtora brasileira Andrade Gutierrez (próxima de Lula da Silva), tornando evidente que a operação fora promovida pelo GES e não pela PT de Bava e Granadeiro: «Ricardo, não querendo pôr em causa as tuas decisões (coisa que nunca farei, e tomarei mais depressa na vida outro tipo de decisão), confesso que estou bastante magoado de não ter sido convidado para o jantar com o Sérgio e o Otávio, pois, e desculpa a imodéstia, fui eu sozinho no Brasil, com o Zeinal escondido em Lisboa, que consegui desatar o nó da compra da Oi e portanto da venda da Vivo. Manda quem pode, obedece quem deve, que é o meu caso, mas não podia deixar de te dizer isto. Abr. JMR».
Ricciardi afirmou ao MP que as dificuldades que existiam para a concretização da entrada da PT na Oi só foram eliminadas após uma conversa entre o então presidente Lula e Sócrates. E acrescentou estar convencido de que a aquisição fora concebida e ordenada por Salgado dada a sua influência na administração da PT, e que as declarações públicas que o então presidente do BES fez a distanciar-se da associação da operadora portuguesa à Oi não terão passado de bluff.
Bataglia e Ferreira Neto continuaram em jogo, servindo de intermediários para alegadamente fazerem entrar milhões nas esferas de Salgado e Sócrates. Terá sido essa a estratégia para continuar a fazer circular dinheiros no âmbito dos negócios da PT no Brasil. A 9 de julho de 2007, a Markwell recebeu da ES Enterprises sete milhões de euros. Nesse mesmo dia, Granadeiro recebeu na sua conta do Pictet uma transferência de seis milhões de euros com origem na mesma ES Enterprises. Uma coincidência que Salgado, em interrogatório, chegou a atribuir a Satanás: «A coincidência destas operações com aquelas datas do Hélder Bataglia é o Diabo, isto foi o Diabo, mas não tem nada a ver», declarou.
Dados recolhidos em Lausanne pelas autoridades suíças vieram reforçar as provas do MP. Aí foram identificados ficheiros informáticos em que o controler financeiro do saco azul do GES, Jean-Luc Schneider, classifica todas as transferências com a designação ‘PT + Pinsong’, neles se verificando que foram incluídos pagamentos nas mesmas datas a Bataglia e aos responsáveis da PT, Bava e Granadeiro. Poucos dias depois, a 30 de julho, a Gunter de José Paulo Pinto de Sousa recebeu três milhões da Markwell de Bataglia, e dessa mesma Gunter é ordenada uma transferência de dois milhões para a Giffard Finance, uma offshore de Carlos Santos Silva.
Manuscrito revela ‘luvas’
Um manuscrito redigido pelo punho do próprio Ricardo Salgado, com a aparente distribuição de verbas para pagamento de 55 milhões de euros de ‘luvas’ a vários arguidos da Operação Marquês é considerado pelo MP uma das peças essenciais para a formulação da acusação a Sócrates e aos restantes suspeitos do megaprocesso.
O documento, que consiste num apontamento efetuado por Salgado num papel de pequenas dimensões dirigido a Amílcar Morais Pires, seu braço-direito na gestão executiva do BES, tem a indicação de «55 M» (55 milhões de euros), que são depois repartidos por três retângulos, um onde aparece escrito «2×7,5» (totalizando, aparentemente, 15 milhões de euros), outro onde se redige «1×10» (10 milhões de euros) e o último com «2×20» (ou seja, 40 milhões de euros). O total soma 65 milhões de euros, mas ao fundo do papel aparece ainda manuscrito pelo banqueiro «+ 10», o que, somado à verba inicial, dá precisamente esse resultado. O rascunho elaborado pelo homem forte do GES apareceu aos investigadores entre os papéis enviados pelas autoridades suíças em resposta a uma carta rogatória do MP solicitando informação sobre movimentações dos arguidos em contas bancárias por eles detidas nesse país. Os números anotados por Ricardo Salgado coincidem com transferências feitas em 2010, 2011 e 2012 para alguns dos arguidos ligado à ES Enterprises. Por exemplo, Bataglia recebeu, em novembro de 2010, 15 milhões de euros, na conta da sua offshore Green Emerald Investments, no banco Crédit Suisse, em Zurique, repartidos em duas tranches iguais, o que coincide com o apontado por Salgado no primeiro retângulo. O MP suspeita que parte substancial da verba recebida por Bataglia tinha Sócrates como destinatário final. Com efeito, os investigadores referem indícios que provam que o homem da Escom aplicou oito milhões de euros num negócio fictício de aquisição de um lote para construção em Luanda, chamado Kanhangulo, que permitiu a entrada dessa verba nas contas de Joaquim Barroca controladas por Carlos Santos Silva.
O próprio Bataglia, em interrogatório, explicou que o percurso do dinheiro se fez entre Salgado e Santos Silva. «Essas operações foram muito simples, fundamentalmente, o Dr. Ricardo Salgado, numa das minhas vindas a Portugal, pediu-me para passar lá no banco… que tinha uns compromissos, tinha a pagar cerca de 12 milhões de dólares e pediu-me se lhe poderia fazer o favor. Perguntou-me se conhecia Carlos Santos Silva, disse-lhe que sim, perguntou-me se tinha conta na UBS, também lhe disse que sim, e pediu-me para fazer esses pagamentos». Bataglia anuiu, sem perguntas «porque, na altura, eram coisas que não se perguntavam ao Dr. Ricardo Salgado…», afirmou. O homem da Escom foi mais longe explicando aos investigadores como tudo se teria processado: Salgado dava-lhe um papelinho com as contas e, quando chegava a Luanda, telefonava a Michel Canals, a quem dava ordens para fazer a transferência «de x, y, z… para a conta x…». Quando o MP lhe perguntou se quem lhe dava a indicação da conta de destino era o próprio amigo de Sócrates, Bataglia respondeu, segundo os autos, que «falou com o José Paulo [Pinto de Sousa] para dizer ao Carlos Santos Silva, uma vez que nem tinha o telefone dele, não era uma relação de intimidade». Acrescentou que apenas em 2008 se terá encontrado pela primeira vez com Santos Silva, que passou a ir ao seu escritório nas Torres das Amoreiras, em Lisboa, «duas ou três vezes, por esses assuntos».
Ainda a respeito do papel rascunhado por Salgado, o presidente do BES, junto ao retângulo «1×10», acrescentou «Sing», o que o MP acredita tratar-se de Singapura, em cuja delegação local do UBS Bava detinha uma conta pessoal para a qual os investigadores descobriram que, de facto, a ES Enterprises transferiu 10 milhões de euros a 20 de setembro de 2011. Bava já recebera antes, em dezembro de 2010, também da ES Enterprises, a quantia de 8,5 milhões de euros pagos à sua sociedade offshore Rownia, com conta no UBS em Zurique. Quanto a Granadeiro, recebeu da ES Enterprises, ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, pagamentos totais na ordem dos 17,5 milhões de euros, que seriam depositados na conta da sua offshore Granal no Pictet, em Zurique.
Até o próprio Salgado utilizou o ‘saco azul’ do GES, através do qual transferiu para a conta da sua offshore pessoal, a Savoices, no Crédit Suisse, em Zurique, a 21 de outubro de 2011, a quantia de quatro milhões de euros, que seriam depois transferidos para a conta da mesma empresa e do mesmo banco mas em Singapura. A esta verba, juntaram-se 3.750 milhões de euros que Bataglia transferiu para a Savoices da verba de 15 milhões recebidos da ES Enterprises. Também Granadeiro, do dinheiro que auferiu da ES Enterprises, transferiu cerca de quatro milhões de euros para a sociedade offshore Begolino, controlada por Salgado e pela sua mulher, Maria João Calçada Bastos.
A convicção do MP é que estes pagamentos correspondem a ‘luvas’ pagas aos diversos agentes que influenciaram a operação de venda da participação da PT na Vivo, precisamente no ano de 2010 – incluindo Sócrates, que teria recebido 12 milhões. Essa tese é reforçada pelo facto de Salgado, no seu manuscrito, sob o apontamento referente aos 55 milhões de euros a distribuir, ter escrito a sigla «PT», associando a verba à operadora. Os investigadores receberam a confirmação desta suspeita ao verificarem que, nas contas da ES Enterprises, Jean-Luc Schneider também incluiu as letras «PT» junto da referência a cada um dos pagamentos feitos nesse período aos arguidos mencionados. Os homens do GES atribuíram até um nome de código à suposta distribuição de ‘luvas’ resultantes da venda da Vivo: «CEL_2010» (embora, por vezes, alguns documentos relacionados com a operação também tivessem a designação genérica «BRIDGE-2010»). Numa folha de cálculo relativa à operação «CEL_2010», também resultante da carta rogatória enviada para a Suíça, existe uma distribuição de verbas pelos vários intervenientes, entre 2010 e 2012, que vai ao encontro do rascunho do presidente do BES.
Nos interrogatórios a que foram submetidos, os envolvidos, tendo reconhecido o recebimento destas verbas, apresentaram versões díspares para a sua origem. Salgado alegou que o pagamento a Bataglia tinha que ver com um acordo assinado entre ambas as partes em 2005 para a «obtenção de concessão de direitos de exploração de petróleo em Angola», a «concessão de direitos de exploração mineira no Congo» e a «expansão da atividade imobiliária quer em Angola quer em Brazzaville». Mas Ferreira Neto abriu-se mais ao MP, narrando que, numa reunião anual do GES, em Lausanne, Salgado e Bataglia lhe pediram para forjar um contrato entre a Pinsong e a Markwell por forma a darem uma justificação para as transferências realizadas. E acrescentou que foi o próprio Bataglia quem lhe confessou tratarem-se de verbas para resolver «questões da PT».
Troca da ‘barriga de aluguer’
Outra das cartas fortes do MP para demonstrar a complexa engenharia financeira montada para benefício de José Sócrates surge, em 2008, na sequência das alterações feitas ao circuito do dinheiro. Segundo a acusação do MP, o chefe do Executivo traçou logo no seu primeiro Governo um plano de enriquecimento pessoal e o primo José Paulo Pinto de Sousa foi, de 2006 a 2008, o seu homem de confiança para lhe guardar o pecúlio.
Mas o caso Freeport, onde se suscitaram suspeitas de Sócrates – como ministro do Ambiente de um dos Governos de António Guterres – ter recebido ‘luvas’ para autorizar a construção do centro comercial com esse nome em zona ambientalmente reservada. Os homens da Operação Marquês concluíram que a resposta das autoridades britânicas, em janeiro desse ano, a uma carta rogatória enviada pelo MP no âmbito daquela investigação punha a nu a responsabilidade do primo de Sócrates na ocultação das verbas.
Com o nome Pinto de Sousa ‘manchado’, Sócrates terá decidido mudar de ‘barriga de aluguer’, ocultando o nome do seu primo dos esquemas e tornando o amigo Santos Silva o seu único ‘testa-de-ferro’. Michel Canals confirmou aos investigadores do MP que, em fevereiro de 2008, Santos Silva o informou que «ia fechar as contas que tinha naquela altura e tencionava transferir [o dinheiro que tinha] para novas sociedades, para apagar ou cancelar o passado, porque os contactos com José Paulo já não eram bons». Assim, a conta da Belino Foundation de Santos Silva passaria a ser o local onde Sócrates guardaria o dinheiro.
Entretanto, buscas efetuadas pelas autoridades suíças ao UBS deram mais um trunfo ao MP: apesar de a fundação estar em nome de Santos Silva, é descoberto num cofre daquela instituição um testamento em que, no caso de morte do empresário, seria o primo do ex-líder socialista o herdeiro de 80 por cento do capital aí acumulado.
O papel do grupo Lena
Em interrogatório ao MP Joaquim Barroca contou que foi buscar Carlos Santos Silva para a administração do grupo Lena em 2001, numa lógica de tentativa de crescimento nos mercados externos. E foi precisamente, segundo a acusação, Santos Silva quem, anos mais tarde, introduziria o próprio patrão no esquema, tornando as contas na Suíça do administrador da construtora de Leiria noutro intermediário dos dinheiros ilícitos para Sócrates. Graças a esta colaboração, o MP acredita que Barroca garantiu, ao longo de vários anos, negócios muito favoráveis para a sua empresa.
São, aliás, múltiplos os contratos que o grupo Lena concretizou com o Estado durante a chefia do Governo de Sócrates, e que mais tarde seriam passados a ‘pente fino’ pela investigação: como as obras da Parque Escolar (empresa pública criada pelo primeiro Executivo de Sócrates), as concessões rodoviárias, o projeto do segundo aeroporto de Lisboa ou o troço Poceirão-Caia do TGV (atribuído em 2010 ao consórcio internacional ELOS – Ligações de Alta velocidade, S.A., que a empresa liderada de Barroca integrava). Outro exemplo é o contrato para a venda de casas (pré-fabricadas) à Venezuela, por quase 850 milhões de euros, contrato obtido em 2008 supostamente por intervenção de Sócrates junto de Hugo Chávez – o negócio foi objeto de apurado escrutínio do MP que acredita que o grupo Lena pagou a José Sócrates mais de 2,8 milhões de euros pelo ‘apoio’.
Em interrogatório, Joaquim Barroca contou que quando Santos Silva lhe pediu para pagar numa sua conta na Suíça um prémio a que alegadamente teria direito achou por bem ter também ele uma conta naquele país. O funcionário e amigo ajudou-o a concretizar o desejo em 2006. O MP suspeita que esta nova conta serviu como mais um veículo de passagem de dinheiros para o universo de Sócrates.
Desde o início da investigação, os responsáveis da Operação Marquês procuraram apurar por que tantos milhões com origem no universo do GES tinham passado pela conta de Joaquim Barroca e seguindo depois para as de Santos Silva –, deitando por terra a explicação inicial dos dois empresários que alegavam que esse dinheiro seria o pagamento pelo grupo Lena de serviços prestados por Santos Silva em países estrangeiros. Embora Barroca tenha sempre admitido que, de facto, se deslocou à Suíça para abrir a conta, garantiu aos investigadores que, depois disso, não teve mais conhecimento dos movimentos na mesma. Confrontado com as quantias que por lá passaram garantiu ao MP que esse dinheiro não seria dele, só poderia ser de Santos Silva que terá abusado da sua boa-fé. Durante o interrogatório o empresário transmite a ideia de que ele próprio teria sido ‘apanhado’ no esquema.
A compra de Vale do Lobo
O negócio de Vale do Lobo, no Algarve, foi igualmente rentável para José Sócrates que, pela decisão política para a sua concretização, terá recebido um milhão em ‘luvas’. Tudo começou em 2007 com um investimento inicial modesto, de apenas 120 mil euros, emprestados por um banco, feito por Diogo Gaspar Ferreira – e a participação de Rui Horta e Costa (ex-administrador da EDP e que passou pelo UBS e Citibank) e Luís Horta e Costa, Ferreira Neto e Bataglia (à época todos administradores da Escom) –, que assim adquiriu e passou a controlar o maior empreendimento.
Segundo o MP, os encargos e o risco do negócio, de quase 300 milhões de euros, ficaram todos por conta da CGD e isso só terá sido possível graças a decisões políticas e de gestão de José Sócrates e de Armando Vara, que terão recebido em troca dois milhões de euros de ‘luvas’.
O capital para distribuir pelos decisores terá sido arranjado com a entrada em cena de um milionário holandês que comprara um lote de terreno em Vale do Lobo. Em depoimento já prestado ao MP, Jeroen Van Dooren revelou que, como pretendia construir a casa segundo um projeto de arquitetura próprio e através de uma construtora da sua confiança, o administrador de Vale do Lobo, Gaspar Ferreira, exigiu-lhe que pagasse um valor extra de dois milhões de euros, apesar de já ter pago 4,3 milhões pelo lote, em 2008. Além disso, foi-lhe indicada uma conta específica para a qual deveria fazer a transferência – pertencendo essa conta a uma pessoa que lhe era desconhecida, mas que o MP apurou pelos dados bancários já constantes do processo ser a conta suíça no UBS de Joaquim Barroca. Como aconteceria noutras ocasiões, o montante acabou por chegar à esfera de Santos Silva (ou seja, de Sócrates) e Armando Vara, em partes iguais. No total, as ‘luvas’ foram pagas em três tranches, entre 2007 e 2008.