31 de março de 1821. O fim da Inquisição!

31 de março de 1821. O fim da Inquisição!


Cumprem-se hoje exatamente 200 anos sobre a decisão das cortes de extinguir o Tribunal do Santo Ofício. Um dos dias em que a liberdade chegou a Portugal em todo o seu esplendor.


Inquisição – só o nome faz estremecer as estruturas de quem ama a liberdade e o espírito da independência. O Papa Gregório IX, no século XIII, ergueu um edifício maligno e persecutório que também tinha o nome de Tribunal do Santo Ofício. Instituição permanente e universal, confiada a religiosos na dependência direta da Santa Sé. Combater heresias, fosse lá o que isso fosse, que punham em causa a legitimidade do poder eclesiástico. Este tribunal instalou-se em Espanha, Alemanha, França, confiado aos dominicanos ou aos franciscanos. 

A Inquisição foi introduzida em Portugal no reinado de D. João III, em 1536, após hesitações da Santa Sé. D. Manuel I, em 1515, já requerera a instalação da Inquisição no país. Mas só com D. João III e após vários anos de negociações é autorizada, e, tal como em Espanha, fica sob a alçada do Rei. O inquisidor-geral era nomeado pelo Papa sob proposta do Rei, daí ter sido exercido o cargo por pessoas da família real. O inquisidor-geral nomeava os outros inquisidores. Havia tribunais em Lisboa, Coimbra e Évora.

“Os suspeitos eram interrogados para se obter a prova de culpa, ou através de testemunhas, cuja identidade era mantida secreta, ou por meio de confissão dos próprios, que podia ser obtida através de torturas. A sentença era dada em sessão solene pública, a que se deu o nome de auto de fé. As sentenças podiam ser morte ou prisão, penitências e apreensão de bens”, escreve Jorge Martins em Portugal e os Judeus, uma verdadeira obra de fôlego sobre o tema do judaísmo em Portugal. E prossegue: “Na Península Ibérica, a Inquisição vai mais além e persegue os cristãos-novos, os judeus e os protestantes. Passou a ser um instrumento ao serviço do poder instituído e contra qualquer ameaça a esse poder”. A Inquisição ganha uma força contra a qual ninguém consegue resistir. Voltemos às palavras de Jorge Martins, doutorado em História pela Faculdade de Letras de Lisboa com uma tese sobre os judeus portugueses. Tese essa que foi a base deste livro fascinante: “O decreto manuelino de expulsão de judeus e mouros (1496), que foi transformado em batismo forçado dos judeus no ano seguinte, foi o princípio do fim das comunidades judaicas em Portugal. Durante os quarenta anos que passaram desde a expulsão até ao estabelecimento da Inquisição, as comunidades judaicas foram ilegalizadas e formalmente extintas, as sinagogas foram derrubadas, vendidas e substituídas por igrejas ou utilizadas para outros fins.

‘Que os Judeus e Mouros forros se saiam destes Reinos e não morem, nem estejam neles. Sendo Nós muito certo, que os Judeus e Mouros obstinados no ódio da Nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor, que por sua morte nos remiu, têm cometido, e continuadamente contra ele cometem grandes males, e blasfémias em estes Nossos Reinos, as quais não tão somente a eles, que são filhos de maldição, enquanto na dureza de seus corações estiverem, são causa de mais condenação, mais ainda a muitos Cristãos fazem apartar da verdadeira carreira, que é a Santa Fé Católica; por estas, e outras mui grandes e necessárias razões, que Nos a isto movem, que a todo Cristão são notórias e manifestas, havida madura deliberação com os do Nosso Conselho, e Letrados, Determinamos, e Mandamos, que da publicação desta Nossa Lei, e Determinação até por todo o mês de Outubro do ano do Nascimento de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e sete, todos os Judeus, e Mouros forros, que em Nossos Reinos houver, se saiam fora deles, sob pena de morte natural, e perder as fazendas, para quem os acusar.

E qualquer pessoa que passado o dito tempo tiver escondido algum Judeu, ou Mouro forro, por este mesmo feito Queremos que perca toda sua fazenda, e bens, para quem o acusar, e Rogamos, e Encomendamos, e Mandamos por nossa bênção, e sob pena de maldição aos Reis Nossos Sucessores, que nunca em tempo algum deixem morar, nem estar em estes Nossos Reinos…’” – absolutamente sinistro.

O fim. Todos os males tem um fim e hoje mesmo comemoram-se os 200 anos do fim da Inquisição em Portugal. A lavagem étnica levada a cabo acabaria por repetir-se um pouco por toda a Europa ao longo dos tempos, com exemplo maior do extermínio programado e estruturado pelo regime nazi. Portugal suportou, durante cerca de 300 anos, a brutalidade posta em prática em nome da Igreja.

O fim jurídico e efetivo da Inquisição chegou a estar marcado para a sessão da Assembleia Constituinte do dia 8 de fevereiro de 1821, nascida após a Revolução Liberal de 1820, já no reinado de D. João VI, O Clemente. A iniciativa partiu do deputado Simões Margiocchi. A concordância de que Portugal precisava de ser, finalmente, iluminado pelas luzes da modernidade, tornou essa extinção uma matéria consensual. Apesar de tudo foi sendo adiada até que foi, de facto, votada no dia 31 de março, sendo publicada no jornal oficial de 5 de abril.

Para que se perceba a brutalidade imposta sobre a sociedade portuguesa pela Inquisição durante quase três séculos, regresso à sabedoria de Jorge Martins. “Vejamos como decorriam os processos inquisitoriais. A Inquisição prendia mediante denúncias, que eram entendidas como ‘provas da justiça’, o que implicava que competia aos réus provar a sua inocência. Mas, como nunca lhes eram divulgados os nomes dos denunciantes nem a matéria das acusações, os presos confessavam ter praticado a alegada heresia com o maior número de pessoas de quem desconfiasse virem as denúncias, na tentativa de acertarem. Quando não confessavam a contento dos inquisidores, os réus eram considerados ‘diminutos’ e condenados à morte. Proliferam as justificações branqueadoras, ou mesmo negacionistas, de que a Inquisição foi produto da ‘mentalidade da época’, como se fosse aceitável a ação de uma instituição que nessa mesma época foi questionada e contestada.

Embora a Inquisição tenha sido introduzida para perseguir os cristãos-novos judaizantes, não foram só os judeus as suas vítimas. Só para dar um exemplo, também o Padre António Vieira, defensor dos judeus, sofreu as consequências de não partilhar a ideologia dominante do seu tempo. (…) Muitas vezes, os presos negativos ou diminutos eram submetidos a tormento. Antes da execução do tormento, os réus eram avisados de que, se perdessem algum sentido, partissem algum membro ou morressem, a culpa era deles, pois podiam tê-lo evitado se tivessem confessado as suas ‘culpas’. Mantendo que não tinham nada mais que confessar, eram despidos, para, alegadamente, não se furtarem à dor, e eram atados ao instrumento de tortura. Os meios mais frequentes eram o potro, uma espécie de cama de tábuas, onde o réu era deitado e apertado com cordas nos braços e nas pernas em seis ou oito partes; e a polé, que consistia em levantar até ao teto a vítima de braços atados atrás das costas com cordas e pesos nos pés, e largada abruptamente sem a deixar cair, provocando assim graves lesões”. 

O dia 31 de março é, assim, um dos grandes dias da liberdade em Portugal. A razão invocada para a extinção da Inquisição foi tão simples como o raciocínio lógico que levou a considerá-la um instrumento político/religioso abominável.

O texto compunha-se de 5 breves artigos que determinavam a abolição do tribunal, a revogação de todas as suas leis e ordens, a entrega dos processos pendentes à jurisdição dos bispos e a gestão dos seus bens e da sua documentação: “A existência do Tribunal da Inquisição é incompatível com os princípios adotados nas bases da Constituição”. A última vítima mortal dessa organização macabra, merece ser recordada. Gabriel Malagrita, um padre jesuíta italiano, condenado como herege no Processo dos Távoras, garrotado e queimado num auto-de fé realizado no Rossio, ainda no século XVIII.