História viva. Ressuscitar O Negro

História viva. Ressuscitar O Negro


Nas ruas da Cova da Moura, e um pouco por todo o país, O Negro voltou a ver a luz do dia, 110 anos depois. Numa altura em que se disputa cada vez mais a memória, o jornal “mostra que esta luta não é de agora”.


Na rua de São Nicolau, na Cova da Moura, a memória das lutas de libertação negra já não começa apenas na década de 40, com a geração que cavaria a sepultura do império português, ganhando a independência para Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Por momentos, foi relembrada a geração que os antecedeu, dos autores de O Negro, o primeiro título de imprensa negra em Portugal, fundado no turbilhão da política republicana, no distante ano de 1911. O jornal teria apenas três edições, que seriam sucedidas pelo lançamento de outros dez títulos negros, confrontando-se com as contradições de um regime que prometia igualdade universal, mas acelerava o ritmo da corrida a África – até o movimento pan-africanista ser abafado por volta de 1933, com o advento do Estado Novo.

“É uma coisa muito pesada, é preciso muita força e muita coragem para fazer isso em 1911. Só pelo nome, O Negro, diz tudo. O quanto queres reivindicar, o quanto queres o teu espaço como sujeito na sociedade, é muito direto. É forte”, diz Vítor Sanches, de 41 anos, ao i, enquanto o seu amigo Rogério Ramos, conhecido por Vírus (nome artístico anterior à pandemia) pintava um mural, ao som de música eletrónica e ritmos africanos. Vítor levava consigo a reedição comemorativa de O Negro – organizada pela mão de três académicos bem conhecidos no movimento antirracista: Cristina Roldão, José Pereira e Pedro Varela, com produção pela Falas Afrikanas – e o entusiasmo não podia ser maior.

Para Vítor, que vende o jornal em mão, ou através da página da Bazofo & Dentu Zona, uma marca de vestuário e centro cultural na Cova da Moura, onde viveu a vida toda, não está só em causa a história, mas também a dignidade.

“Tanto tempo passou desde 1911, mas nada mudou”, diz Vítor, que não esquece como desde sempre viu a diferença de tratamento relativamente a colegas brancos, a falta de oportunidades para quem nascia no seu bairro, o cerco constante pela Polícia – queixas algo diferentes do que se lê em O Negro, mas com uma raiz igual, considera. “É a mesma coisa noutras lutas. Esta semana foi dia da mulher, e vês que muito não mudou, as mulheres ainda são pagas menos que os homens e não foi há muito tempo que tiveram direito ao voto. Tanta luta e os mesmos poderes a puxar-te para baixo”.

O Negro “mostra-nos que esta luta já não vem de agora. Que aquilo de que estou a falar não é à toa. E isso eleva as pessoas, sobretudo pessoas oprimidas, pessoas do gueto como nós”, diz. “Levar isso às comunidades, para mim, é mesmo importante”, salienta Vítor, e é por isso que se tem desdobrado entre bairros com grandes comunidades negras, do Zambujal ao Casal de São Brás. “O trabalho que foi feito por trás, de ir ao arquivo retirar isto, é incrível”, elogia o homem por trás da Bazofo & Dentu Zona, que alterna entre a paixão pelo ativismo e a serigrafia, com biscates como eletricista à mistura. “Mas o pessoal académico já tem acesso a isso. E quando levo o jornal a uma pessoa aqui da zona, isto tem um impacto enorme. É uma surpresa e um empoderamento brutal”.

 

Memória

Era exatamente essa a intenção da equipa que resgatou O Negro ao esquecimento, do fundo dos arquivos da Biblioteca Nacional.

“O que mais nos impressionou foi a atualidade de muitas das questões ali foram colocadas”, conta José Pereira, investigador do Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (IHC NOVA FCSH). “Salvaguardando as devidas distâncias, lembrando que O Negro é publicado a escassos cinco meses da proclamação da República, com a diferença de Portugal ter colónias, e de estarmos a três anos do deflagrar a Grande Guerra, há temas atuais”, é notório que “da mesma forma que o racismo é multissecular, a resistência ao racismo acaba a acompanhar a própria existência do racismo”, explica o historiador. Lamentando que, “até agora, a cultura hegemónica não se tenha debruçado sobre estas fontes”.

No entanto, mesmo numa época de crescente debate sobre o racismo a nível global, com um “revigoramento do ativismo negro” em Portugal, nas palavras de Pereira, o sucesso da reedição de O Negro surpreendeu. Houve uma primeira tiragem de 250 exemplares, cada um vendido a cinco euros, numa semana já se esgota a segunda tiragem e caminha-se para uma terceira, sem contar com quem leu online. “Nem nós sabíamos a repercussão que tudo isto ia ter. Está muito acima das nossas expectativas”, diz o historiador.

Mas, afinal, quem era esta geração de homens e mulheres negras, considerados inferiores por tantos dos seus concidadãos, que se atreveram a desafiar o racismo no coração da Metrópole?

Pelos seus escritos, sabemos que eram muito influenciados pela luta antirracistas nos EUA, pelo colapso da Reconstrução após a Guerra Civil e pelo pan-africanismo de Marcus Garvey. Conhecemos o percurso de alguns, como Ayres de Menezes, o primeiro médico negro de São Tomé e Príncipe, que hoje dá nome ao principal hospital de São Tomé. Muitos dos outros ficaram esquecidos, entre as fendas da história. “Ainda há muito a apurar”, refere Pereira.

Contudo, entre ativistas que conhecemos, o percurso é relativamente constante. “A maioria destas pessoas são ligadas a Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe”, enumera o historiador – estas colónias são o tema de boa parte das notícias de O Negro. “Temos alguns profissionais liberais, muitos, muitos estudantes, muitas pessoas em início de vida laboral. Quase todos tiveram acesso ao ensino e muitos deles poderão estar ligados ao setor das plantações em São Tomé e Príncipe”.

À época, esta colónia portuguesa, a mais lucrativa, era conhecida como a “joia do império”, estava entre os maiores produtores de cacau do mundo. Ou seja, deixa a ideia que muitos destes ativistas faziam parte de uma emergente pequena burguesia local, treinada para gerir os setores do império a mando de Lisboa, estando entre os poucos negros com acesso a educação – e, como tal, com recursos para mais facilmente se insurgirem.

“É caso para se dizer que o feitiço virou-se contra o feiticeiro”, refere Pereira, traçando o paralelo com a Casa dos Estudantes do Império, fundada pelo salazarismo em 1944, com o propósito de reforçar os laços às colónias. Acabou por se tornar um berço do nacionalismo africano, por onde passaram nomes como Amílcar Cabral, futuro líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Agostinho Neto, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), ou Marcelino dos Santos, da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)

Se alguns autores, como Mário Pinto de Andrade (1928-1990), vêm a geração de O Negro como “proto-nacionalistas”, ligados à geração da Casa dos Estudantes do Império até por laços familiares, a verdade é que estes pioneiros ainda não tinham o atrevimento dos seus sucessores. “É importante percebermos a ligação ao setor das plantações de São Tomé para entender estes ativistas, para se perceber as posições que assumiram relativamente às colónias”, salienta Pereira. “Criticam o colonialismo, sim, criticam alguns aspetos e práticas, mas não proclamam continuadamente a independência dos territórios coloniais”.

A questão é que os tempos conturbados entre 1911 e 1933, marcados por uma sucessão de conflitos políticos e sociais, obrigavam a uma política de nuance. Por um lado, ainda não havia a mordaça do Estado Novo, “a existência de ativistas assumidamente antirracistas, que ocupam a praça pública, prende-se com um regime republicano mais aberto com algumas ideias”, nota Pereira. Por outro lado, “esta geração confronta-se com os limites da Primeira República, fortemente colonialista. Boa parte da propaganda republicana, antes da Proclamação da República, assenta sobre uma afirmação de que a monarquia não era suficientemente eficaz no projeto colonial”, salienta o historiador. “Vão continuar, quando não acentuar, as campanhas de ocupação militar de territórios africanos”.

Por mais que a Primeira Republica prometesse maior liberdade na Metrópole, “vai dizer que, nas colónias, há pessoas que não são consideradas cidadãs, que estão ao abrigo das leis do indigenato, vítimas de todas as arbitrariedades”, reforça Pereira. “Contudo, mesmo na Metrópole, se folhear o jornal O Negro, vai reparar na denúncia de práticas discriminadoras. Há um texto que fala no ensino em Portugal, não só no ensino superior, e escreve-se sobre atitudes de descriminação contra estudantes negros, em Lisboa e noutros locais”.

Apesar de a geração de O Negro ser um dos mais antigos registos da lutas antirracistas em Portugal encontrado, até agora, ainda há muito a descobrir – e muita falta de vontade em apoiar esse estudo, acusa o historiador. “Temos sempre de chamar a atenção para o caráter embrionário do trabalho que temos desenvolvido sobre estas gerações”, ressalva. Notando que, analisando para a imprensa panafricanista da altura, parece haver até a sugestão de pioneiros anteriores, de algo à espreita no vazio histórico que separa a chegada das primeiras comunidades negras a Portugal, por volta do séc. XV, e a geração de O Negro. “Há muitas questões que podem ser levantadas. E para já, poucas respostas”, considera Pereira.

 

“Mercadoria”

Para Vavá Pina, morador da Cova da Moura, a descoberta de que havia movimento negro no início do séc. XX é uma surpresa. “Uma pessoa ouve 1911, e até fica em dúvida que nessa altura a comunidade negra falasse num jornal”, refere, enquanto pega numa cópia de O Negro. Um miúdo cruza a rua a toda a velocidade, de bicicleta, rindo, enquanto uma velhota chama do alto da janela, oscilando entre o português e o crioulo. “Quase que nem dá para acreditar, uma pessoa tem que ler”, continua Pina. “Isso foi nos Estados Unidos?”

“Não, foi cá, esses homens já estavam na luta em 1911!”, intervém Vítor Sanches. “Para ser sincero, gostava de saber mais de história da comunidade negra”, admite Pina. “Eu sou cabo-verdiano, sei a história do tempo de Cabral, de Amílcar Lopes Cabral. Mas 1911 já é muito para trás”.

“Esses aí é que foram os mentores da geração de Cabral, eles é que lançaram o que seria o movimento da Casa dos Estudantes do Império”, explica o Vítor, a poucos metros de um mural do líder histórico do PAIGC, enquanto Pina se agarra ao jornal O Negro com interesse.

Já o primo de Vítor, Wilson, entra na conversa, para expressar o seu desagrado com o que se aprende – e o que não se aprende – no sistema de ensino português. “Na escola, só vais saber dos negros quando começa a escravatura. Falam dos escravos, mais nada. Quando os portugueses chegam a África, nos Descobrimentos, estavam uns pretos lá e pronto. Não dizem nada da cultura, da história, das cidades e bibliotecas, não se fala nada disso. De certa forma, o que querem mostrar é que éramos um povo burro, sem história, sem cultura”.

“Éramos só mercadoria”, acrescenta Vítor, enquanto nos desviamos para deixar passar um carro, na rua estreita onde Vírus pinta paredes. “Nunca fomos representados na história”, concorda Wilson, enquanto Pina levanta a cabeça do jornal. “Eu tenho filhos nascidos aqui neste país, em Portugal. Em Cabo Verde dão história de Portugal, mas aqui não falam de Amílcar Cabral, Silvino da Luz, Pedro Pires, da luta armada. Só falam da parte portuguesa. Eu pergunto, por que é que não falam?”.

A pergunta fica no ar. “Na altura, uma pessoa não sabia muito, a escola era decorar, não nos ensinaram nada”, remata Wilson. “E a partir de uma certa idade, procuras saber por ti. E aí vês que foi tudo deturpado, não foi assim que aconteceu. Tem partes verídicas, mas também partes que omitiram. É assim a história como é ensinada, uma fábula”.

Mas o estigma associado a essa história falsa, à imagem da África como uma vasta extensão de selva e deserto pontilhada por selvagens, faz-se sentir no dia-a-dia. Até na forma como se vê bairros como a Cova da Moura, defende Vítor.

“A Cova da Moura tem aquela fama, mas é uma coisa construída”, refere o ativista, que se ressente da constante vigilância da Polícia, onde vê mão dura e discriminação. “Foste até lá acima e vieste e ninguém se meteu contigo, ninguém te deixou desconfortável. E, no entanto, passaste a zona toda quando foste lá acima”, lembra, apontando para ruelas coloridas onde é fácil nos perdermos, onde se vê gente de todas as origens a vender roupa na esquina de uma rua. ”Por isso é que te digo, é uma fama construída com um fim, que sempre foi deitar abaixo a comunidade. Uma comunidade junta é uma comunidade forte”.