Antes desta pandemia, a última vez que tínhamos tido um estado de excepção em Portugal tinha sido com o estado de sítio decretado na região de Lisboa em Novembro de 1975, o qual durou oito dias. Desde Março de 2020, o estado de emergência já foi decretado por 11 vezes, sempre por 15 dias, e é sistematicamente renovado. A décima renovação ocorreu agora com a publicação do decreto do Presidente da República 11-A/2021, de 11 de Fevereiro. Há sempre um padrão comum a estas renovações que é o facto de, em primeiro lugar, as medidas serem sistematicamente agravadas e, em segundo lugar, essas medidas serem sempre dirigidas contra os cidadãos comuns, que são injustificadamente perseguidos, muitas vezes de forma absurda.
A última medida absurda, que consta do art.o 4.o 2) f) do decreto 11-A/2021, é a permissão ao Governo para estabelecer, por decreto-lei, “níveis de ruído mais reduzidos em decibéis ou em certos períodos horários, nos edifícios habitacionais, de modo a não perturbar os trabalhadores em teletrabalho”. Curiosamente, esta medida é apresentada como uma suspensão parcial do exercício da “iniciativa privada, social e cooperativa”, parecendo ser essa a actividade a que as famílias se dedicam nos edifícios habitacionais. Mas as gravíssimas consequências desta medida são por demais evidentes. As famílias estão presentemente encerradas nas suas casas, com as suas crianças, que não podem levar às escolas, sendo por isso inevitável que exista ruído nos apartamentos. Se esta medida fosse implementada, assistiríamos a uma multiplicação de coimas de cada vez que alguém em teletrabalho se queixasse dos seus vizinhos por causa do barulho das crianças. Ocorreria uma invasão a todo o tempo dos edifícios habitacionais pela polícia, que aplicaria sistematicamente coimas pela infracção verificada. Parece que estamos num cenário de guerra, em que não apenas se manda fechar todas as pessoas em suas casas como também se lhes exige que fiquem em absoluto silêncio para não serem ouvidas pelo inimigo.
Deveria, por isso, causar perplexidade ao país que o Parlamento tenha autorizado uma medida destas. Tal já não causa, no entanto, qualquer surpresa, uma vez que o Parlamento, desde o início da pandemia, se tem abstido sistematicamente de exercer qualquer controlo sobre as medidas decretadas no estado de emergência, em clara violação de direitos fundamentais, mesmo quando essas medidas invadem as suas próprias competências. Foi assim que foi criado, por simples decreto do Governo, um novo tipo de crime de violação do confinamento, quando a matéria penal é da competência do Parlamento, tendo sido os tribunais a rejeitar a condenação dos cidadãos com base nessa disposição claramente inconstitucional.
A oposição está de acordo com esta omissão do Parlamento. Na verdade, a grande iniciativa do líder da oposição nesta pandemia foi a de propor a redução dos debates parlamentares com o Governo, alegando que “o primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais, tem é de trabalhar”. E, assim, o Governo já nem sequer se incomoda a prestar contas da sua gestão da pandemia ao Parlamento, levando a que tenha sido na CNN que o ministro dos Negócios Estrangeiros tenha assumido a responsabilidade pelos erros do Governo nas medidas decretadas por altura do Natal. Claro que a CNN terá seguramente muito mais audiência do que a ARTV mas, em termos institucionais, é perante o Parlamento que o Governo responde e é lá que deve assumir a responsabilidade pelos seus erros.
Não admira, por isso, que Portugal tenha perdido a categoria de país totalmente democrático no índice da prestigiada revista The Economist, tendo passado a ser qualificado como uma democracia com falhas. Salienta-se que para esta descida de categoria muito contribuiu a reversão das liberdades democráticas em virtude da pandemia e a redução dos debates no Parlamento. Imagine-se o que dirá agora a The Economist quando souber que outra medida presentemente em discussão em Portugal é o adiamento de eleições…
O art.o 19.o, n.o 4 da Constituição obriga a que o estado de emergência respeite o princípio da proporcionalidade e se limite ao estritamente necessário para repor a normalidade constitucional. Não nos parece que seja isto o que presentemente ocorre no nosso país.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990