GNR. “Passar 12 horas de pé numa fronteira é inconcebível, é um abuso por parte do Comando Geral”

GNR. “Passar 12 horas de pé numa fronteira é inconcebível, é um abuso por parte do Comando Geral”


Assimetrias regionais naquilo que diz respeito ao cumprimento da carga horária de trabalho, falta de condições no patrulhamento das fronteiras ou deslocações pagas pelos militares são alguns dos problemas narrados por dois dirigentes da Associação dos Profissionais da Guarda ao i.


“Em primeiro lugar, existe um horário de referência em portaria que é executado pela norma de execução permanente. O Comando Geral tem poderes em situações bem definidas e argumentadas e pode alterar o sistema numa situação destas. Mas não achamos correto que haja discrepâncias ao nível nacional. A Guarda é só uma”, começou por explicar César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda da GNR (APG/GNR).

O responsável referia-se à portaria que regulamentou o horário de referência semanal dos militares da GNR, definindo que o “período máximo de trabalho dos militares da Guarda é de 40 horas semanais”, mencionada na comunicação que o comandante-geral suplente Nuno Pires da Silva enviou aos comandantes, diretores e chefes da GNR, datada de 31 de janeiro, documento confidencial ao qual o i teve acesso.

Nesta missiva lê-se que “tendo em conta a reposição do controlo de pessoas nas fronteiras terrestres, podem os Comandantes dos Comandos Territoriais das Unidades com fronteira terrestre suspender” esta portaria, “permitindo o aumento do tempo de serviço diário até ao máximo de doze horas, possibilitando, assim, o aumento do quantitativo de militares em gozo simultâneo de dias de descanso e o acréscimo no número desses dias”.

 

De pé na fronteira durante 12 horas

Contudo, na ótica do cabo ao serviço do posto de Lever, em Vila Nova de Gaia, “ao nível nacional, os profissionais não podem ficar prejudicados porque em determinados locais são mais necessários recursos humanos”. Esta possibilidade leva a que “os comandantes das unidades possam decidir aquilo que acharem melhor e isso traz muitas desigualdades, porque um faz de uma forma e outro pode fazer de outra”.

Aliás, na carta enviada ao tenente-general Rui Manuel Carlos Clero no passado dia 4 de fevereiro, a APG/GNR explicitou que “o Comando A pode optar por suspender a NEP 3.01.06, de 04 de novembro de 2016 e, o Comando B pode tomar uma decisão diferente, sendo certo que as Unidades Territoriais sem fronteira terrestre continuarão a ter este normativo em vigor”.

“Passar 12 horas de pé numa fronteira é inconcebível, é um abuso por parte do Comando Geral. Não definiu nada bem e cada comando de unidade vai decidir. Há uns que são mais próximos dos profissionais e vão tentando ajustar as coisas, mas outros não vão ao dispositivo e simplesmente é o ‘quero, posso e mando’, mas isso não pode ser”, desabafou, explicando que têm recebido mensagens de colegas que lhes dão a entender que “têm o espírito de missão, mas ficam revoltados com estas situações”.

“Está definido que as patrulhas são de oito horas em veículo, as apeadas são de seis horas no máximo. E isso não é cumprido porque têm de ser feitas 12 horas sem descanso e sem condições”, confessou, questionando: “Porque se estiverem na fronteira terão o quê? Um carro de apoio. As fronteiras existem, estão barradas por elementos da GNR, blocos de cimento, cabos de aço para não passarem para cá sem a devida autorização”, relatou.

 

“Fechamo-nos ao mundo” É de lembrar que, entre 31 de janeiro e 14 de fevereiro, estarão em vigor as medidas do novo estado de emergência, que incluem o “autoconfinamento dos cidadãos portugueses em território continental”. De norte a sul do país existem oito pontos fronteiriços abertos em permanência – Valença, Vila Verde da Raia, Quintanilha, Vilar Formoso, Marvão, Caia, Vila Verde de Ficalho e Castro Marim – e cinco onde a passagem será permitida apenas nos dias úteis entre as 7h e as 9h e as 18h e as 20h – Monção, Miranda do Douro, Termas de Monfortinho, Mourão e Barrancos. O caminho rural de Rio de Onor, que liga a antiga aldeia comunitária a Espanha, também está aberto a passagens transfronteiriças, mas apenas às quartas-feiras e aos sábados entre as 10h e as 12h.

Mas, para Tiago Duarte, profissional da GNR há 19 anos, patrulheiro no comando de Castelo Branco e dirigente da APG/GNR, “há duas coisas muito distintas: uma são as fronteiras e outra coisa é aquilo que está a acontecer nos distritos com fronteira”.

A título de exemplo, referiu que em Castelo Branco, na primeira vez que se ergueram fronteiras, “Termas de Monfortinho funcionava 24h e só podia passar quem se enquadrava nas exceções, como os médicos. Desta vez, definiram para estas fronteiras, quatro a nível nacional, que funcionariam das 7h às 9h e das 18h às 20h”. No entanto, desde a passada sexta-feira, “a presença da Guarda só acontece neste horário específico. E fechamo-nos ao mundo com baias, blocos de cimento, cabos de aço”, afirmou.

 

Despesas acrescidas

“Aos fins de semana, as fronteiras nunca estão condicionadas, só lá estão as baias. Um médico que queira vir dar uma consulta a Castelo Branco, imaginemos, terá de vir por Vilar Formoso, são mais quatro horas de caminho. Temos um militar que mora em Espanha, a esposa é espanhola e enfermeira, e ele vem pela fronteira. Terá de vir por Vilar Formoso, fará mais quatro horas de caminho, mais 12 de serviço, o que equivale a 16 horas”, adiantou. “O colega trabalha por turnos, ninguém do comando lhe disse que ele entra às 8h e sai às 18h porque a fronteira, depois, estará fechada. Teria de fazer 8 horas por dia só em viagens”, enunciou.

No documento relativo às instruções complementares, redigido por Nuno Pires da Silva, lê-se igualmente que “podem ainda os Comandantes das Unidades Territoriais, de forma excecional e após solicitação ao Comando da Guarda, proceder à suspensão temporária do funcionamento dos Postos de Atendimento Reduzido, desde que tal medida contribua para o aumento do número de patrulhas às ocorrências e, consequentemente, para um melhor atendimento ao cidadão”.

 

“Há mais probabilidade de apanharmos covid-19”

Para Duarte, os militares têm despesas acrescidas e não têm condições para os postos onde vão. “Há um camarada que andou a carregar móveis de um posto para outro. Nós temos as chamadas camaratas, de corpo e meio, mas depende do espaço. Obviamente que para passar a noite dá, é um descanso relativo”, disse, adicionando que ao seu posto foram acrescentados 16 elementos.

“Se nos juntam cada vez mais, há mais probabilidade de apanharmos covid-19. Ainda no domingo estivemos nove pessoas num turno e nove noutro, quando o normal seriam três. Andamos todos em cima uns dos outros”, lamentou.

“Com o facto de se encerrarem postos e de se colocar o efetivo dos mesmos noutros consegue-se o objetivo de aumentar o número de patrulhas diárias na rua. A questão é perceber se o parco aumento de patrulhas supera o sentimento de segurança que as populações perdem ao ver os seus postos fechados”, descreveu. “Por outro lado, aumenta exponencialmente o risco de contágio de covid-19 no efetivo, ainda para mais misturando ‘efetivos diferentes’, porque haverá muitas mais pessoas em espaços exíguos, a fardar/desfardar, a fazer refeições, a realizar expediente”. Na perspetiva do patrulheiro, o objetivo de aumentar as patrulhas “é facilmente atingido, sem o recurso ao ajuntamento de efetivos, através da aglomeração apenas no papel, ou seja, na escala. Com isto, sem ajuntamentos desnecessários, dando preferência a que o serviço seja feito por militares do posto A num turno e pelos do posto B noutro turno”, comentou.

“O Ministério da Administração Interna quer as fronteiras assim, que as deixe estar. Os espanhóis não têm lá ninguém, Portugal é que está fechado ao mundo. Atravessaram as baias com um cabo de aço para tentar evitar que alguém passe. O Comando Geral deu estas ordens, uma espécie de carta-branca aos comandos distritais, inclusivamente para encerrar postos. Temos 15 postos em Castelo Branco e dez estão fechados nas aldeias que nem têm nada a ver com fronteiras sob o pretexto de reforço da fronteira”, expôs Duarte.

Assim, aludiu ao ponto “manter como prioridades a prevenção do contágio, a contenção da pandemia e a preservação da segurança dos militares da Guarda e dos cidadãos” desenvolvido na carta do Comando Geral.

“Há colegas que fazem 60 km por dia” “Privamos as povoações do nosso serviço. Temos localidades que ficam distantes umas das outras e estes postos funcionam entre as 8h e as 16h, e é aquilo que se pode arranjar para o cidadão abrir um inquérito, por exemplo. Há colegas meus que fazem 60 km por dia”, descreveu Duarte, contando que em Monsanto existem três militares que foram deslocalizados para Idanha-a-Nova, que fica a 32 km de distância.

“Tenho colegas que saem às 0h, entram às 8h e não vão a casa. Permanecem nas instalações, onde dormem. Nestes postos, com mais efetivo, nem têm condições para dormir. Não se entende a decisão”, defendeu. “Na semana passada, a fronteira funcionou 24h com a presença da GNR. Não se entende o encerramento destes postos. A fronteira está ao abandono desde as 20h de sexta e reabre às 7h de segunda. Se formos espanhóis, achamos que Portugal se fechou. Chegamos às fronteiras e percebemos que o Estado português não tem capacidade para tratar destas”, avançou.

“Todos recebem exatamente o mesmo ao final do mês. Alguns vão ter de pagar deslocações porque, se estavam em postos de atendimento reduzido que vão fechar, vão ser colocados noutro, fazendo 30 ou 40 km a mais do que faziam por norma. E isso é uma despesa suportada pelos profissionais, e não pelo Estado ou pela Guarda, pois tomámos conhecimento de que, em alguns locais de serviço, como em Castelo Branco e na Guarda, há já indicações verbais para as deslocações serem feitas a expensas dos profissionais”, denunciou Nogueira.

 

A precariedade Na perspetiva do dirigente, tal panorama é incompreensível na medida em que “os militares ganham, em início de carreira, pouco mais de 790 euros”.

A título de exemplo, em 2005, a PSP e a GNR – nos escalões de início de carreira – auferiam 697,80 euros, enquanto o salário mínimo nacional (SMN) era de 374,70 euros. O salário destas duas autoridades subiu até aos 789,50 euros em 2010, ano em que o SMN estava fixado nos 475 euros. A partir daí, manteve-se estanque até 2019, ano em que o SMN era de 600 euros. No ano passado deu-se o primeiro aumento, para os 791,90 euros, enquanto o SMN subiu 35 euros em 12 meses, para os 635 euros. E esta alteração deveu-se ao facto de, em maio de 2020, terem entrado em vigor os aumentos de 0,3% para a generalidade dos trabalhadores da função pública.

“Com os congelamentos dos últimos dez anos, ganham pouco. Têm dez ou mais anos de carreira e ganham o mesmo que alguém que se inicie. Portanto, estas deslocações constituem uma despesa que sobrecarrega o orçamento familiar”, explicou Nogueira, acrescentando que a GNR devia ter veículos à disposição dos militares para que se desloquem para os novos postos e não sejam prejudicados. “Já andam sobrecarregados com cargas horárias de 12 horas e, agora, ainda vão ser sobrecarregados no seu orçamento porque têm de gastar para se deslocarem. Logicamente que não podemos estar de acordo e esperemos que o Comando Geral defina isto melhor”, afirmou.

 

Suspensão do horário de referência?

Nem para todos “Garantir maior flexibilidade aos Comandos subordinados, permitindo a organização do serviço da forma mais adequada ao contexto próprio em que operam, com vista a aumentar a resiliência do dispositivo e assegurar a continuidade da ação no cumprimento da missão” é uma das alíneas pertencentes à denominada “intenção do Comandante”; porém, para Nogueira, “sem consultar associações representativas, suspenderam o horário de referência para determinados locais, os locais onde existem fronteiras. Guarda, Castelo Branco, Alentejo, Chaves, tudo o que faça fronteira. Utilizam a suspensão do horário de referência para ter pessoal a fiscalizar as fronteiras”, declarou o líder da APG/GNR, não deixando de salientar que “existem muitos militares em serviços administrativos que deviam ser desviados para a vertente operacional, mas isso nunca acontece, não há coragem para tal”, considerando que “são profissionais que têm formação e estão a tratar de burocracias”. Devido à existência de “uma estrutura com uma hierarquia muito militar, existe a ideia de que a Guarda deve funcionar dentro dos quartéis, mas deve é estar na rua, porque é para isso que as pessoas pagam impostos”.

Deste modo, “enquanto houver este entendimento de que a GNR é o quarto ramo das Forças Armadas, isto continuará assim. Temos uma grave falta de pessoal e os problemas vão-se agravando porque continuamos a ter profissionais que vão para a situação de reserva e não entram elementos para colmatar essas saídas”, adicionou, rematando que “também não se reestrutura pegando nos elementos que tratam da vertente administrativa”, o que conduz a que sejam “sempre os mesmos a serem penalizados, os que estão nos postos, nos destacamentos, na vertente operacional”. “Temos o espírito de missão mas, quando começamos a ver que o vencimento de um guarda que está na rua é o mesmo do que um que está sentado, isto gera revolta e, se não se mudar o rumo destas situações, a revolta só vai aumentar”.

 

As baixas como tábua de salvação “No ano passado, em março, foi criado um despacho em que, no caso de haver um casal com um elemento das forças de segurança e outro da área da Saúde, existia a possibilidade de um ficar em casa. E isso era definido pela prioridade: entre uma enfermeira casada com um guarda, por exemplo, ela iria trabalhar”, elucidou Nogueira. “Também estamos na linha da frente mas, nos dias de hoje, o mais necessário é o trabalho da enfermeira. E isto não acontece porque o ministro não manteve o despacho que durou até abril. Muitos desses guardas têm metido baixas porque não têm onde deixar os filhos. Os agrupamentos escolares que supostamente albergariam os filhos dos bombeiros, guardas, etc., ficam distantes das residências desses profissionais”.

Recorde-se que a 14 de março do ano passado, o Governo decretou que os profissionais de saúde e os agentes das forças de segurança não precisariam de faltar ao trabalho para ficar em casa a cuidar dos filhos durante os 15 dias seguintes porque, apesar de as escolas terem fechado nessa semana, no âmbito do estado de emergência decretado para conter a pandemia de covid-19, algumas continuaram a receber filhos de profissionais de saúde e das forças de segurança. “Estes profissionais têm de poder trabalhar. Nas medidas que tomámos, pelo menos uma escola de um agrupamento escolar vai receber os filhos dos profissionais de saúde que têm de trabalhar e não podem ficar sem um espaço para deixar os seus filhos”, esclareceu Mariana Vieira da Silva, ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, à época, aos órgãos de informação.

“Existe a agravante dos bebés pequenos. Os pais não deixaram de pagar as creches porque, senão, perdem a vaga e contactam outras que poderiam ficar com essas crianças no caso de os dois pais terem de ir trabalhar. Temos o exemplo de um associado nosso que ligou para uma dessas creches e teria de pagar 500 euros, isto é, as duas mensalidades ao mesmo tempo. Isto é brincar com quem anda a trabalhar e ganha pouco”, disse.

É de referir que há duas semanas, devido à situação epidemiológica vivida no país, o Governo determinou o encerramento por duas semanas de todos os estabelecimentos de ensino. As creches também encerraram na mesma altura. “Nesta fase, todos os níveis de ensino e também as respostas de apoio social estão encerradas, e as creches, nesta quinzena, continuam encerradas, estando em vigor o regime de apoio à família aprovado há uma semana para as famílias que precisem de cuidar dos seus filhos durante este período”, disse Mariana Vieira da Silva.

 

Onde e com quem deixar os filhos?

“Queríamos pelo menos o mesmo despacho do ano passado, para que um dos dois pudesse ficar com os filhos. Queremos uma resposta porque as aulas vão recomeçar a nível digital e alguém terá de acompanhar as crianças mais pequenas, que não podem estar sozinhas e precisam de ajuda”, apelou Tiago Duarte.

“Uma camarada minha que está de baixa para conseguir tomar conta das crianças tem três filhos. Neste momento, a escola de acolhimento está a 50 km de casa dela, porque é na Covilhã e ela mora numa aldeia. Ganha 66% do vencimento. Ao invés de ser uma baixa por saúde, é uma ausência justificada, digamos assim”, ilustrou.

“Aqui só usufrui destas escolas quem vive no centro das cidades”, realçou, evidenciando que esta hipótese parece uma miragem para muitos. “Quem esteja no operacional, num horário rotativo, não consegue ir buscar nem ir pôr os miúdos às escolas. Não é compatível, teria de andar com os miúdos para trás e para a frente”.

Por outro lado, Duarte mencionou o caso de um colega casado com uma enfermeira e a realidade não é menos negativa, tendo este recorrido à escola de acolhimento com um senão: tem de optar pelo horário flexível, trabalhando entre as 9h e as 18h e abdicando dos suplementos remuneratórios – 59 euros de patrulhamento, 140 euros de subsídio de escala e gratificados como vigilância de jogos de futebol – para usufruir deste recurso.

“O hospital não concilia a escola com a Guarda nem vice-versa. Ele diz que se conseguem governar com os dois vencimentos, mas obviamente que é diferente”, referiu, lembrando que “existem pressões” pois, no decorrer do primeiro confinamento, o colega em questão pediu-lhe que falasse com o advogado da APG/GNR, que o informou de que as escolas de acolhimento não têm caráter obrigatório.

“Ele vive a mais ou menos 15 km da escola, é perto, mas se não é de cariz obrigatório não deviam levar a mal se alguém quisesse ficar em casa com os filhos. Se ele não o fizesse, se calhar, podiam levantar-lhe algum processo porque o dever da disponibilidade é o mais evocado. Podiam não o punir, mas teria muitas chatices. Quando ele lançou a hipótese de ficar em casa, foi logo posto no sítio”, revelou.

“A Guarda tem normas internas e quando começa a ir beber à Lei Geral do Trabalho entra-se num campo perigoso. Torna-se muito difícil. Traz coisas boas, mas também causa muitos problemas. Estamos na linha da frente para tudo menos para sermos reconhecidos monetariamente”, concluiu Duarte.