O respeito pelos critérios de vacinação


Cada vacina que está a faltar a um idoso ou a um doente pode representar, na prática, a sua condenação à morte.


A vacina contra a covid-19 é um medicamento preventivo desta doença que neste momento se revela extraordinariamente escasso. Na verdade, os atrasos na chegada das diversas vacinas levam a que hoje tenhamos um ritmo de vacinação extremamente lento. Por outro lado, estamos na fase mais crítica da pandemia, atingindo 300 mortes por dia, tendo a esmagadora maioria mais de 80 anos de idade. Pessoas mais novas com comorbilidades têm também risco elevado de morte em caso de infecção. Cada vacina que está a faltar a um idoso ou a um doente pode, assim, representar na prática a sua condenação à morte.

É por isso que têm de ser estabelecidos critérios rigorosos de atribuição das poucas vacinas existentes, consoante a necessidade das mesmas para o combate à pandemia e para a salvação de vidas. E esses critérios têm de ser exclusivamente médicos. É admissível que se dê prioridade aos profissionais de saúde, perante a necessidade absoluta dos mesmos para o tratamento dos doentes infectados. Mas já é altamente questionável que devam ser abrangidos todos os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, como pretendeu o primeiro-ministro através do despacho 1090-D/2021, de 26 de Janeiro. A lista de prioridade na vacinação não pode coincidir com a lista de precedências do protocolo de Estado. O país atravessa uma situação de emergência absoluta e, nas situações de emergência, a prioridade tem de ser sempre a salvação dos mais vulneráveis. Há uma população idosa e doente que se encontra em pânico e que deve ser vacinada imediatamente, não devendo, por isso, ser deixada para trás.

Mas a situação mais grave que está a ocorrer neste momento respeita aos alegados casos de atribuição de vacinas a pessoas não prioritárias. Não é aceitável que se possa afirmar que se tratou de doses sobrantes, uma vez que, sendo as vacinas tão escassas e havendo tantas pessoas prioritárias em espera, não é possível encarar a existência de sobras. Se houve alguns casos de pessoas que não se apresentaram a receber a vacina, seria facílimo encontrar rapidamente outras pessoas prioritárias a quem as doses fossem ministradas, sem violar as regras e atribuir a vacina a quem dela menos carece.

A atribuição indevida de vacinas corresponde a um comportamento de extrema gravidade na medida em que põe em risco pessoas que necessitam absolutamente dessas vacinas para salvar a sua vida. E, precisamente por esse motivo, é um comportamento que tem de ser reprimido severamente. Não é, por isso, aceitável a posição das autoridades de saúde, que têm vindo a desvalorizar esse tipo de comportamentos, admitindo inclusivamente dar a segunda dose da vacina a quem recebeu irregularmente a primeira. Ora, a primeira dose da vacina já implicou necessariamente a subtracção da mesma a um doente prioritário, que dela necessitava absolutamente. Não se compreende, por isso, que a consequência seja ainda a atribuição de um benefício suplementar, com uma segunda privação da vacina a quem dela absolutamente necessita.

O respeito pelas regras de vacinação, as quais devem basear-se exclusivamente em critérios médicos ou de risco de infecção, é absolutamente essencial para a credibilidade do combate à pandemia. Se há coisa que as autoridades de saúde não podem fazer é dar aos cidadãos a imagem de que essas regras podem ser desrespeitadas sem consequências.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990