Uma ditadura que se instala aos poucos em Portugal


Podem fazer-se as maiores tropelias aos direitos fundamentais da democracia que tudo acaba bem quando é noticiado. 


Já vi o filme há muitos anos mas ficou-me sempre na memória – nessa altura ainda acreditava em ideais utópicos e comovia-me com facilidade. Independentemente das minhas utopias, penso que o filme acabava mais ou menos com um funcionário americano a dizer que os EUA podiam cometer as maiores barbaridades mas eram o único país do mundo que permitia que se fizessem filmes sobre esses acontecimentos.

Os acontecimentos diziam respeito à destituição de Salvador Allende e à tomada de poder, através de um golpe de Estado, pelo general Pinochet. Citando de cor, penso que Chove em Santiago acaba por mostrar como os serviços secretos, e não só, dos EUA estiveram por detrás desse golpe que destituiu, à força, um homem que acabaria por se tornar dos maiores ícones da esquerda mundial: Allende. Pinochet foi um ditador cruel que matou milhares de pessoas, mas muito longe de outros carniceiros da Argentina. Mas isso é apenas uma questão de contabilidade.

Vem esta conversa a propósito – e com as devidas distâncias, como é óbvio – de Portugal começar a ter algumas semelhanças com as administrações americanas. Podem fazer-se as maiores tropelias aos direitos fundamentais da democracia que tudo acaba bem quando é noticiado. Se é público é porque vivemos em democracia. Não me lembro de tamanha hipocrisia como a que estamos a viver. Funcionários do Ministério Público – duas procuradoras, uma das quais estagiária, e dois chefes da PSP – decidiram vigiar dois jornalistas que tinham investigado o caso e-toupeira, chegando ao cúmulo de violar o segredo bancário de um deles. Mas mais. Ficámos também a saber que as mesmas figuras do Ministério Público exigiram saber que jornalistas é que tinham trabalhado, desde o início, no programa Sexta às 9, da RTP, além de tentarem apurar quais os políticos que falavam com esses repórteres. Perante tudo isto, o que fazem as autoridades? Assobiam para o lado e acham tudo normal porque, afinal, tudo está a ser divulgado. Não tenho qualquer preferência política, mas digo: se isto fosse num Governo de Passos Coelho, a procuradora-geral da República e a ministra da Justiça eram alvo de manifestações diárias a pedirem as suas demissões. Onde estão os defensores da liberdade de imprensa? Estarão já confinados? Tenham vergonha.