Duas versões do mesmo mito

Duas versões do mesmo mito


Ao contrário da luta contra a pandemia, fechámos o ano longe de vencer a emergência climática e com piores resultados que em 2019.


Escrevo este primeiro artigo de 2021 a olhar o futuro, mas a refletir sobre as lições de 2020. O ano de 2020 terminou com o início de um ambicioso programa europeu de vacinação contra a covid-19 e uma esperança renovada. Em 2020 tivemos a oportunidade de presenciar o incrível desenvolvimento, teste, produção e distribuição de várias vacinas eficazes contra um novo vírus, o SARS-CoV-2, em menos de um ano após a sua descoberta – um feito que trouxe a importância da ciência para o quotidiano, da abertura dos telejornais às conversas de café (que ainda as há). A vacina é o resultado de um esforço global da ciência, possível apenas pela partilha de informação e cooperação entre instituições de diferentes países e pelo investimento continuado em ciência-base. É, para mim, o avanço científico mais extraordinário a que a minha geração teve oportunidade de assistir, e se nada mais ficar para o futuro, que sirva de exemplo a importância do investimento a longo prazo em ciência. Mas não é sobre vacinas que quero escrever.

Nos longos meses de 2020, poucas foram as notícias positivas mas, durante os primeiros meses de pandemia e confinamentos generalizados por toda a Europa, assistimos a um efeito global que gerou entusiasmo. Como consequência da diminuição da atividade humana, os meses entre março e maio registaram uma diminuição drástica e sem precedentes das emissões de CO2 e NO2 para a atmosfera (mais de 50% nas principais cidades europeias) – um alento para o combate à emergência climática, mas que ilustra bem o desafio que temos pela frente para atingirmos um desenvolvimento verdadeiramente sustentável. Há, no entanto, outra versão para o mesmo mito.

Ao contrário da luta contra a pandemia, fechámos o ano longe de vencer a emergência climática e com piores resultados que em 2019. Apesar do otimismo e das restrições de circulação, as concentrações de CO2 e NO2 na atmosfera não só não se reduziram como sofreram um ligeiro aumento em relação a anos anteriores. Há mais carros a circular nas estradas europeias, foram batidos recordes de temperatura globais e assistimos a fenómenos extremos como são exemplo os incêndios de enormes dimensões que devastaram a Austrália e a grande quantidade de furacões e tempestades tropicais que fustigaram o Atlântico.

Na União Europeia unem-se esforços na construção do Pacto Ecológico Europeu (o European Green New Deal) – um ambicioso conjunto de medidas para que os países da União tenham um impacto neutro no clima já em 2050, um pacto alicerçado nas energias renováveis, na generalização dos veículos elétricos e na economia circular. Também aqui há duas versões para o mesmo mito. Estes três pilares têm por base um denominador comum frequentemente ignorado mas que é necessário salvaguardar para alcançar a neutralidade nas emissões de carbono. Não há futuro mais verde sem cadeias de fornecimento seguras, diversificadas e sustentáveis de minerais críticos, componentes essenciais na produção dos componentes eletrónicos das tecnologias associadas à mobilidade elétrica e ao armazenamento de energia, e de matérias-primas secundárias para a implementação de uma economia circular. Não é possível desejar um futuro com neutralidade carbónica sem pensar em recursos naturais quer sejam primários, reciclados ou recuperados através da extração de aterros urbanos e industriais.

Na resposta a estes desafios, e no combate à emergência climática, a ciência desempenhará seguramente um papel fundamental. Numa altura em que se discutem as linhas gerais do programa de financiamento de investigação europeu para os próximos oito anos, o Horizon Europe, é essencial que este contemple a investigação de novos métodos de prospeção e exploração de recursos naturais com menores impactos, mais sustentáveis, e de novas ferramentas que permitam maior escrutínio ao longo de toda a cadeia de fornecimentos de matérias-primas, desde a sua origem até ao utilizador final. Atingir a meta da neutralidade carbónica em 2050 passará por uma indústria mineira necessariamente mais modernizada, digital e monitorizada em tempo real. A exploração sustentável dos recursos naturais exige o desenvolvimento de novos métodos de ciência de dados espaciais para a definição de estratégias de exploração mais eficientes, de tecnologia blockchain que garanta transparência em todos os passos das cadeias de fornecimento e a transferência e integração destas ferramentas no quotidiano das empresas que exploram estes recursos.

Não haverá muito tempo para implementar medidas que permitam alcançar as metas previstas para 2050, mas se há mensagem positiva que podemos retirar do ano de 2020 é certamente a capacidade que a ciência mostrou de responder uma vez mais a desafios globais em tempo útil.

 

Professor do Instituto Superior Técnico