A nomeação do procurador europeu


Um assunto com esta gravidade não pode ser desculpado com a simples menção inicial de que se tratava de lapso dos serviços do MJ, nem sequer com a posterior demissão de um director-geral.


A Procuradoria Europeia veio a ser instituída pelo regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho de 12 de Outubro de 2017, cujo art.o 16.o estabelece que cada Estado-membro designa três candidatos ao cargo de procurador europeu. Estes são, depois, objecto de um parecer fundamentado por parte de um comité de selecção, elaborado nos termos da decisão de execução (UE) 2018/1696 do Conselho de 13 de Julho de 2018, sendo então seleccionados e nomeados pelo Conselho, por maioria simples dos seus membros. O Conselho não é obrigado a seguir o parecer do comité de selecção, salvo no caso de este considerar que algum dos candidatos nomeados não tem condições para exercer o cargo.

Este regulamento veio a ser executado em Portugal através da lei 112/2019, de 10 de Setembro, cujo art.o 13.o prevê que a selecção e designação dos candidatos portugueses se inicia com uma indicação de três candidatos de cada uma das magistraturas por parte do Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior do Ministério Público, dos quais são depois escolhidos três candidatos por despacho da ministra da Justiça. Como é normal, em qualquer indicação de três nomes para outra entidade escolher não há nenhuma hierarquização desses nomes, cabendo a escolha a quem nomeia, que neste caso é o Conselho da União Europeia. A hierarquização portuguesa dos três candidatos escolhidos é, por isso, irrelevante.

O comité de selecção europeu graduou, assim, conforme lhe competia, os três candidatos portugueses ao cargo, colocando uma candidata em primeiro lugar. Estranhamente, no entanto, no caso da candidata portuguesa como no caso dos candidatos apresentados pela Bélgica e pela Bulgária, o Conselho não aceitou a proposta do comité de selecção, não tendo sido dada qualquer explicação para o facto, referindo apenas ter-se “baseado numa avaliação diferente dos méritos dos candidatos, efetuada nas instâncias preparatórias competentes do Conselho” (considerando (13) da decisão de execução (UE) 2020/1117 do Conselho de 27 de Julho de 2020).

Sabe-se agora que, através da Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia, foram transmitidos pelo Governo ao Conselho dados falsos sobre o currículo do candidato que viria a ser escolhido para o cargo. Tal só pode ser motivo de perplexidade pois, em primeiro lugar, não se encontra prevista no processo de nomeação nenhuma tomada de posição pelo Governo diferente daquela que consiste na designação dos três nomes a escolher pelo Conselho. Em segundo lugar, é perfeitamente incompreensível que se acrescentem numa altura posterior do processo novos dados sobre um dos candidatos, ao que se julga apresentados depois do parecer do comité de selecção e que, por isso, não foram apreciados por ele. Sendo esses dados falsos, o assunto reveste-se de uma gravidade extrema, uma vez que vicia completamente o processo de escolha do procurador europeu pelo Conselho. Ora, um assunto com esta gravidade não pode ser desculpado com a simples menção inicial de que se tratava de lapso dos serviços do Ministério da Justiça, nem sequer com a posterior demissão de um director-geral, estando em causa neste processo a responsabilidade do Estado português ao mais alto nível.

Quando se soube desta escolha houve uma carta aberta de vários académicos a censurar o Conselho, recordando que, aquando da escolha do procurador-geral europeu, que veio a recair na procuradora romena Laura Codruta Kövesi, em Outubro de 2019, houve uma tentativa do Governo romeno de impedir essa nomeação, alterando igualmente a escolha do comité independente. Aparentemente, as investigações dessa procuradora tinham desagradado ao Governo romeno, tendo a mesma sido demitida da Direcção Nacional Anticorrupção em Julho de 2018 pelo Ministro da Justiça romeno, devido ao desagrado que a sua actuação contra a corrupção estava a causar.

Nos termos do considerando (3) da decisão de execução (UE) 2018/1696, “o procedimento de seleção do procurador-geral europeu e dos procuradores europeus deverá ser um elemento fundamental para garantir a sua independência”. Para esse efeito, essa selecção deve estar afastada da interferência dos Estados-membros por razões internas. Há, por isso, que explicar cabalmente tudo o que se passou com este processo de nomeação, a bem da credibilidade da Procuradoria Europeia.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990