Um bom pacote de televisão e internet com acesso a canais que dependem de subscrição representa, para muitos, uma boa fatia do rendimento ao final do mês. Ver jogos da bola – ou outros desportos – é talvez o que mais pesa. E nem todos podem ou estão dispostos a dar esse dinheiro.
Assim, tem crescido a utilização de IPTV ilegal (Internet Protocol Television). No fundo, este é um serviço que permite às pessoas ver canais de televisão e outro tipo de conteúdos através da internet, substituindo os canais tradicionais como o cabo ou o satélite. Pode funcionar de forma totalmente legal mas há conteúdos ilegais em que o consumidor paga uma taxa anual ou mensal para que fiquem ligados a uma série de conteúdos que, da forma tradicional, pagaria muito mais.
Rui Luís Aguiar, professor do departamento de Eletrónica, Telecomunicações e Informática da Universidade de Aveiro desmistifica a confusão que existe entre IPTV legal e ilegal. «Ninguém tem problema em utilizar o seu telemóvel ou o seu computador para ver televisão», até porque as operadoras já têm esse serviço, começa por explicar ao Nascer do SOL. Ora, isso já é um serviço de IPTV. Mas é legal porque requer uma assinatura paga, por exemplo, a uma operadora que tem todos os direitos de ‘vender’ esse acesso. «O que acontece é que nada impede qualquer pessoa de estar a receber, por exemplo, a Sport TV no seu computador, fazer uma coisa que se chama a descodificação e voltar a empacotar a Sport TV para enviar para muito bem quer e, na prática, para quem muito bem lhe pagar». E isso é IPTV ilegal.
«Muitas dessas plataformas estão fora do país. Isso é absolutamente ilegal porque viola questões como direitos de conteúdos, de imagem, de transmissão», explica Rui Luís Aguiar, acrescentando que «quem faz isto, faz por competência técnica mas sem qualquer respeito a todos os acordos de conteúdo, licenciamento», entre outros.
Países reagem mas consumidores adoram
As formas como os países vêm a utilização destas plataformas difere. Por exemplo, em Portugal, não há multas nem prisão para quem usa IPTV de forma ilegal. O mesmo não acontece em Itália onde cerca de 1600 clientes de IPTV receberam multas por violarem a lei dos direitos de autor. Se fosse a primeira vez, tinham que pagar 150 euros. Caso já tivesse repetido, a multa superava os 1032 euros.
A Grécia também vai por esse caminho e surgiu uma pena histórica de cinco meses de prisão para um utilizador por subscrever IPTV pirata.
Mas o caso pode mudar de figura. É que há quem diga que estas são medidas abusivas que violam a privacidade e a Lei dos Serviços Digitais (DSA), como defende a Computer and Communications Industry Association (CCIA), cujos membros incluem a Google, a Amazon e a Cloudflare.
Nesse sentido, esta entidade enviou uma carta à Comissão Europeia onde questiona até que ponto estas medidas dos países são legais. Agora é preciso esperar pela resposta da União Europeia.
Mas, quem usa, não quer outra coisa. Miguel paga 30 euros de três em três meses, principalmente para poder ver jogos de futebol. Ao Nascer do SOL explica que, no seu caso, trata-se de uma aplicação. «É-nos fornecida uma chave de utilizador e palavra passe e depois qualquer aparelho com internet e capacidade de ler a aplicação serve. Pode ser smartphone, smart tv ou uma box», conta. Miguel explica ainda que a aplicação funciona com a melhor das qualidade ainda que possa bloquear um pouco quando se trata de um «jogo grande» e esteja a ser «utilizada por muitas pessoas». Mas é algo que não acontece muitas vezes e, por isso, justifica bem o valor. Já para ver filmes ou séries, «funciona muito bem».
Questionado sobre o porquê de ter aderido uma plataforma deste género, é claro: «É um absurdo os valores que são praticados pelos canais desportivos», lamenta, defendendo que «a discrepância de valores é enorme». «Há canais que perderam ligas muito importantes, com muita audiência e os preços dos pacotes ainda estão mais caros. Acho que se houvesse um preço mais justo ou acessível, mesmo que fosse superior ao preço da IPTV, a população iria preferir ver diretamente desses canais pagos». E deixa um exemplo concreto sobre o nosso país. «A nível de desporto não há um canal que reúna tudo. Em Portugal, existem dois e para quem gosta de acompanhar o desporto teria de ter os dois canais abertos. A solução para além da redução de preços, poderia ser um pacote onde existisse a possibilidade de subscrever os dois canais sem que isso significasse um impacto financeiro tão significativo ao final do mês», sugere.
Filipa nem paga nada. Tem a ‘sorte’ de usar a de um colega que a partilha consigo. A ideia é a mesma: ver jogos de futebol. «Sou do tempo em que a Sport TV custava 10 euros por mês. Agora – e isto claro depende dos pacotes – está próximo dos 30. E perderam imensas ligas. Não faz absolutamente sentido nenhum», diz lembrando que é preciso juntar outros canais desportivos porque «só um não chega para ver os jogos todos».
Estes são apenas dois dos muitos casos que existe em Portugal. Segundo dados do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), cerca de um milhão de utilizadores já acedeu a conteúdos de forma ilegal no nosso país, registando-se 288 mil lares com acessos a serviços digitais e audiovisuais ilegais com subscrição mensal, a tão conhecida IPTV.
De acordo com o EUIPO, Portugal é o nono país que mais consome pirataria digital e audiovisual e o quarto onde mais jovens (34%) admite aceder a sites ilegais para entretenimento.
Pedro Mota Soares, secretário-geral da Apritel, reforça estes dados e deixa alertas: «A pirataria afeta toda a cadeia de valor das indústrias criativas, prejudicando todos os agentes económicos que nela se integram, nomeadamente autores, artistas, produtores e realizadores de todo o setor audiovisual, distribuidores, editores, canais de televisão, prestadores de serviços audiovisuais a pedido e operadores de comunicações eletrónicas», começa por dizer ao Nascer do SOL.
Segundo Pedro Mota Soares, falamos «de perda de postos de trabalho, de menor capacidade de produção artística, cultural e desportiva e em menos retenção de riqueza no país», dizendo que na indústria audiovisual, as receitas são penalizadas em 146 milhões de euros por ano. «Ou o setor dos media, onde a crise se agudizou também pelo acesso indevido a conteúdos pagos», diz, acrescentando que se estima que o consumo de pirataria «resulte numa perda anual de 250 milhões de euros para a economia portuguesa, dos quais cerca de 70 milhões de receita fiscal (IVA e IRC)».
O secretário-geral da Apritel adianta que, apesar «de o acesso ilegítimo em Portugal ter atualmente uma moldura penal definida, o facto de só ser aplicada no âmbito de acusação via processo-crime diminui a probabilidade de condenação efetiva. E, ainda que se verifique uma proliferação cada vez maior de ofertas ilegais de acesso a conteúdos, a perceção geral é a de que o combate às mesmas, além de ineficaz, do ponto de vista técnico, peca por ser particularmente lento e pouco reativo».
Por isso, diz ser urgente «adotar medidas para, eficazmente e de forma célere, dissuadir e combater a pirataria digital e o seu consumo, em linha com o que tem sido feito em vários países da Europa», lembrando que Alemanha, França, Dinamarca, Reino Unido e, mais recentemente, Itália «dispõem de instrumentos legais para dissuadir e penalizar o consumo de pirataria digital, como o chamado mecanismo “Cease & Desist”, um sistema de alertas também ao consumidor, implementando-o com o escrutínio de uma autoridade competente, (no caso de Portugal, a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC))».
Além disso, acrescenta Pedro Mota Soares, «o consumo de pirataria coloca riscos para a segurança dos cidadãos, dos seus aparelhos e das infraestruturas digitais. De acordo com a Europol e com a Interpol, a pirataria está ligada a enormes riscos cibernéticos e ao financiamento de redes de terrorismo, máfias internacionais e diversos crimes, como a burla e o branqueamento de capitais».
Já a Anacom refere que «os conteúdos televisivos e os eventos desportivos em direto são dos mais afetados pela pirataria, que provoca perda de postos de trabalho, menor capacidade de produção e perda de competitividade das nossas indústrias criativas, com prejuízo da economia portuguesa»
Atenta a esta realidade, a Anacom recorda que «foi uma das entidades que se associou a uma campanha para alertar contra o uso de pirataria, em abril passado».
Além disso, no âmbito da sua atividade fiscalizadora, o regulador diz que «tem tido uma participação ativa no combate a situações de acesso ilegal a conteúdos televisivos, seja através de cardsharing, ou partilha de cartão, como de técnicas de streaming, atuando em colaboração com a Polícia Judiciária, sempre que tal lhe é solicitado, nomeadamente através da realização de perícias a equipamentos apreendidos, ou participando em diligências de busca».
Mas não dispõe de dados sobre o consumo de conteúdos ilegais.
O Nascer do SOL tentou uma reação junto de canais desportivos mas não teve resposta até ao fecho desta edição.
Europol de olho
O cerco vai mesmo apertando, mais para quem comercializa ou utiliza este tipo de produtos. No arranque deste ano soube-se que a Europol, numa operação levada a cabo com a agência de aplicação da lei da União Europeia, durante o Campeonato Europeu de Futebol e os Jogos Olímpicos de Paris, desmantelou uma rede de várias centenas de fornecedores de streaming ilegal de desporto e de outros conteúdos pirateados.
Segundo a imprensa internacional, a operação envolveu 15 países, incluindo Bulgária, Croácia, França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Roménia, Suécia, Suíça e Reino Unido.
Foram identificados mais de 560 revendedores de conteúdos pirateados que incluíam o streaming de filmes, séries e canais de televisão. E a La Liga – de Espanha – que colaborou nesta investigação, diz que foram identificados mais de 100 suspeitos e 11 foram detidos.