Detenções na pandemia


A pandemia não pode ser pretexto para que os direitos, liberdades e garantias das pessoas não sejam respeitados. Agora que finalmente surgiu uma vacina que se espera possa terminar com as infecções, é tempo de terminarem igualmente as derivas autoritárias que surgiram neste período. 


Logo no início do surto do novo coronavírus em Wuhan, o Governo chinês adoptou medidas de contenção fortíssimas, praticamente encerrando do resto do mundo uma cidade com 10 milhões de pessoas. Perante o isolamento dessa população, houve uma advogada de 37 anos, Zhang Zhan, entretanto dedicada ao jornalismo, que decidiu deslocar-se em Fevereiro passado a Wuhan para informar sobre o surto e a forma como os habitantes viviam o confinamento. E efectivamente foi colocando nas redes sociais diversos vídeos com relatos dramáticos sobre a forma como a população de Wuhan estava a ser tratada, considerando a situação como contrária aos mais básicos direitos humanos. Os vídeos com imagens do que se passava nas ruas e nos hospitais foram amplamente divulgados na internet, o que levou a que Zhang Zhan tivesse sofrido diversas ameaças das autoridades.
Em 14 de Maio passado, para preocupação geral dos seus seguidores, Zhang Zhan desapareceu, tendo sido depois divulgado pelas autoridades chinesas que fora detida em Xangai, a 632 km de distância. Na prisão, Zhang Zhan entrou em greve da fome, tendo mais tarde relatado que teria sido sujeita a alimentação forçada.
No início de Novembro, Zhang Zhan foi formalmente acusada de difundir falsas informações sobre o surto de Wuhan nas redes sociais e em entrevistas a órgãos de informação estrangeiros, tendo sido proposta pela acusação uma pena entre quatro a cinco anos de prisão. Ontem foi condenada a quatro anos de prisão pelo Tribunal de Xangai, por “ter causado distúrbios” e “arranjado problemas” com a sua actividade informativa.
Este é o primeiro caso de alguém formalmente punido na China com pena de prisão por divulgar informações sobre a pandemia, mas não é o único caso de detenções por esse motivo. Em Fevereiro passado desapareceu subitamente o jornalista e também advogado Chen Qiushi, que estava igualmente a divulgar vídeos sobre a situação dos hospitais de Wuhan nas redes sociais, tendo surgido depois, em Setembro, a informação de que teria sido sujeito a uma “quarentena forçada” e que estaria “sob supervisão do Estado”. 
No início da pandemia, o comentário que muita gente fez foi que medidas de confinamento com a dureza das que foram adoptadas pela China nunca poderiam ocorrer na Europa, face à cultura de respeito pelos direitos humanos que caracteriza os países europeus. A verdade, no entanto, é que a evolução da situação levou a que os diversos países europeus fossem sucessivamente restringindo as liberdades e os direitos fundamentais dos seus cidadãos, não se sabendo presentemente qual o limite para essas restrições.
Mesmo no nosso país temos vindo a assistir a medidas de contenção cada vez mais duras, que chegaram ao ponto de se pretender aplicar penas criminais por crime de desobediência, sem que nenhuma autoridade tenha dado uma ordem concreta para adoptar determinado comportamento. Tivemos inclusivamente o caso de uma advogada detida pela GNR por crime de desobediência quando se encontrava sozinha no seu escritório, cujo processo foi, felizmente, depois arquivado pelo Ministério Público. 
A pandemia não pode ser pretexto para que os direitos, liberdades e garantias das pessoas não sejam respeitados. Agora que finalmente surgiu uma vacina que se espera possa terminar com as infecções, é tempo de terminarem igualmente as derivas autoritárias que surgiram neste período. O Estado de direito tem de sobreviver à pandemia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção 
das regras do acordo ortográfico de 1990

Detenções na pandemia


A pandemia não pode ser pretexto para que os direitos, liberdades e garantias das pessoas não sejam respeitados. Agora que finalmente surgiu uma vacina que se espera possa terminar com as infecções, é tempo de terminarem igualmente as derivas autoritárias que surgiram neste período. 


Logo no início do surto do novo coronavírus em Wuhan, o Governo chinês adoptou medidas de contenção fortíssimas, praticamente encerrando do resto do mundo uma cidade com 10 milhões de pessoas. Perante o isolamento dessa população, houve uma advogada de 37 anos, Zhang Zhan, entretanto dedicada ao jornalismo, que decidiu deslocar-se em Fevereiro passado a Wuhan para informar sobre o surto e a forma como os habitantes viviam o confinamento. E efectivamente foi colocando nas redes sociais diversos vídeos com relatos dramáticos sobre a forma como a população de Wuhan estava a ser tratada, considerando a situação como contrária aos mais básicos direitos humanos. Os vídeos com imagens do que se passava nas ruas e nos hospitais foram amplamente divulgados na internet, o que levou a que Zhang Zhan tivesse sofrido diversas ameaças das autoridades.
Em 14 de Maio passado, para preocupação geral dos seus seguidores, Zhang Zhan desapareceu, tendo sido depois divulgado pelas autoridades chinesas que fora detida em Xangai, a 632 km de distância. Na prisão, Zhang Zhan entrou em greve da fome, tendo mais tarde relatado que teria sido sujeita a alimentação forçada.
No início de Novembro, Zhang Zhan foi formalmente acusada de difundir falsas informações sobre o surto de Wuhan nas redes sociais e em entrevistas a órgãos de informação estrangeiros, tendo sido proposta pela acusação uma pena entre quatro a cinco anos de prisão. Ontem foi condenada a quatro anos de prisão pelo Tribunal de Xangai, por “ter causado distúrbios” e “arranjado problemas” com a sua actividade informativa.
Este é o primeiro caso de alguém formalmente punido na China com pena de prisão por divulgar informações sobre a pandemia, mas não é o único caso de detenções por esse motivo. Em Fevereiro passado desapareceu subitamente o jornalista e também advogado Chen Qiushi, que estava igualmente a divulgar vídeos sobre a situação dos hospitais de Wuhan nas redes sociais, tendo surgido depois, em Setembro, a informação de que teria sido sujeito a uma “quarentena forçada” e que estaria “sob supervisão do Estado”. 
No início da pandemia, o comentário que muita gente fez foi que medidas de confinamento com a dureza das que foram adoptadas pela China nunca poderiam ocorrer na Europa, face à cultura de respeito pelos direitos humanos que caracteriza os países europeus. A verdade, no entanto, é que a evolução da situação levou a que os diversos países europeus fossem sucessivamente restringindo as liberdades e os direitos fundamentais dos seus cidadãos, não se sabendo presentemente qual o limite para essas restrições.
Mesmo no nosso país temos vindo a assistir a medidas de contenção cada vez mais duras, que chegaram ao ponto de se pretender aplicar penas criminais por crime de desobediência, sem que nenhuma autoridade tenha dado uma ordem concreta para adoptar determinado comportamento. Tivemos inclusivamente o caso de uma advogada detida pela GNR por crime de desobediência quando se encontrava sozinha no seu escritório, cujo processo foi, felizmente, depois arquivado pelo Ministério Público. 
A pandemia não pode ser pretexto para que os direitos, liberdades e garantias das pessoas não sejam respeitados. Agora que finalmente surgiu uma vacina que se espera possa terminar com as infecções, é tempo de terminarem igualmente as derivas autoritárias que surgiram neste período. O Estado de direito tem de sobreviver à pandemia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção 
das regras do acordo ortográfico de 1990