Desmond Morris e as poses

Desmond Morris e as poses


Acaba de sair na Bizâncio Poses: Linguagem Corporal na Arte, publicado no ano passado pela Thames & Hudson.


Desmond Morris (nascido em 1928), zoólogo e etólogo inglês, é um caso sério de longevidade na edição. Em 1968 foi publicado pela Europa-América O Macaco Nu, cujo original tinha saído em 1967 na Jonathan Cape. Acaba agora de sair na Bizâncio Poses: Linguagem Corporal na Arte, publicado no ano passado pela Thames & Hudson. Entre um e outro livros, tanto no original como na tradução, mediaram 52 anos! O Macaco Nu (o título deve-se ao facto de o Homo Sapiens Sapiens ser a única espécie de primatas que não é peluda, tendo por isso de se vestir) conheceu um êxito extraordinário em todo o mundo: mais de 50 milhões de exemplares vendidos, em mais de 23 línguas. Em Portugal foi sendo sucessivamente reeditado (a editora Arte a Ciência, ligada ao Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, publicou em 2018 uma nova tradução, assinalando os 50 anos do livro). As edições antigas, incluindo uma do Círculo de Leitores saída logo em 1967, encontram-se com facilidade nos alfarrabistas, podendo levar-se para casa por tuta e meia.

A tese de Morris, um grande divulgador de ciência, é que somos uma espécie animal e carregamos connosco essa condição, por muito que a cultura a queira camuflar. Estas ideias sócio biológicas não são, com certeza, isentas de crítica. Em particular, algumas feministas atacaram-no por ele defender que o papel dos géneros estava embebido na biologia mais do que na cultura, mas ele tem-se defendido bastante bem.

Li O Macaco Nu quando era adolescente e agora, passado meio século, folheio com gosto as belas estampas do último livro de Morris (último a ser publicado, porque o autor, agora a viver agora na Irlanda, continua ativo). Espanto-me por ver alguém que me consegue seduzir tanto em novo quando já não vou para novo. Entre um e outro livro passaram pelas minhas mãos vários outros do mesmo autor. Fui a uma das minhas estantes, que tem uma amostra das mais de duas dezenas de obras de Morris traduzidas entre nós, e encontrei (são todas da saudosa Europa-América, quando não há indicação de editor): O Zoo Humano (1970), uma sequela de O Macaco Nu, sobre a vida nas cidades; A Biologia da Arte: um estudo comparativo da ‘Arte’ dos grandes símios com a arte humana (este foi o primeiro livro de Morris, escrito em 1963, quando já era doutorado em Zoologia pela Universidade de Oxford, sobre a criação “artística” feita por macacos; O casal a nu (Portugália, 1967; depois do 25 de Abril os livros sobre sexo proliferaram); A Tribo do Futebol (1982; reeditado pela Arte e Ciência, 2018, com prefácio de José Mourinho), sobre o comportamento animal dos adeptos do desporto-rei); O Animal Humano: Uma perspetiva pessoal da espécie humana (Gradiva, 1996), obra muito ilustrada associada a uma série da BBC; Sexos Humanos: Uma História Natural do homem e da mulher (Terramar, 1998), de novo ligada a uma série da BBC; A Natureza da Felicidade (Sinais de Fogo, 2007), ao qual recorri para o programa Original é a Cultura da SIC sobre esse tema; e O Macaco Criativo: Três milhões de anos de arte (Arte e Ciência, 2008), sobre as raízes do impulso artístico no ser humano. 

Não os tenho na minha biblioteca, mas numa pesquisa do catálogo da Biblioteca Nacional encontrei outros livros do autor, designadamente: Reprodução das Espécies (1973), Os Gestos, suas origens e significado (1981); O Tempo dos Animais (1981), A Olho Nu: Viagens em busca da espécie humana (2003), e uma série de guias do comportamento animal (do gato, do cão, do cavalo, e do bebé), todos eles êxitos de vendas. Nos tempos mais recentes e já fora da Europa-América, enumero: A Mulher Nua: Um estudo do corpo feminino (Relógio d’Água, 2007) e O Desenvolvimento da Criança: Como pensa, aprende e cresce nos primeiros anos (Arte plural). O título mais curioso, muito apropriado à presente quadra, é Mistérios do Natal (Europa-América, 1991), no original Christmas Watching: os macacos não fazem árvores de Natal! Encontrei algumas omissões na Biblioteca Nacional, designadamente O Animal Humano e Sexos Humanos, o que mostra que, ou o depósito legal ou a catalogação não funcionam muito bem. E há erros: Poses, da Bizâncio, está catalogado como sendo da Chiado Editores. 

Há uma ligação entre Desmond Morris e Portugal, que explica a edição de alguns dos seus livros em belas edições da Universidade do Porto (numa editora separada da U. Porto Press): por louvável iniciativa do biólogo Nuno Ferrand de Almeida, o zoólogo inglês doou o seu espólio aquela universidade. A razão foi que teria ali melhor tratamento e poderia ser mais útil do que nas bibliotecas e arquivos do Reino Unido. Desejo bem que assim seja, embora conheça o subfinanciamento das bibliotecas universitárias. Eu próprio criei uma – o Rómulo, na Universidade de Coimbra -, que se centra na cultura científica, onde se encontram muitas obras de Morris, assim, como dos seus amigos David Attenborough e Richard Dawkins. 

Na introdução a Poses Desmond Morris diz que o seu novo livro, no original Postures (boa tradução de Maria Carvalho), é um cruzamento entre Manwatching: A Field Guide to Human Behaviour (Harry Abrams, 1977, não traduzido em português), onde expôs a nossa muito rica linguagem corporal, e O Macaco Criativo, onde apresentou a evolução dos processos artísticos na espécie humana ao longo de séculos: “No presente volume, juntei esses dois assuntos, combinando pela primeira vez os meus dois campos de estudo. Tenho-me interrogado amiúde por que motivo Napoleão era sempre retratado com a mão dentro do sobretudo – finalmente sei a resposta” (p. 6).

O leitor que a queira saber terá de saltar para as pp. 80-81. Não, Napoleão não usava um anel dado por uma amante secreta que Josefina não podia ver, nem estava a fazer um sinal maçónico oculto, nem era preguiça do artista evitando pintar as mãos: aquele gesto, que remonta à Antiguidade Clássica, era simplesmente um hábito nos retratos da época. Morris explica o seu significado: é como se Napoleão dissesse com o gesto que é “um líder firme que também é calmo, tranquilo e imperturbável”. Num exercício de história comparada Morris mostra um retrato de Estaline com a mesma pose, o que me fez lembrar a derrota de Napoleão na Rússia (pp. 84-85). A mulher de Morris, Ramona, entretanto falecida, era historiadora e ajudou a fazer o livro. 

Poses está dividido em nove capítulos: Saudações, Bênçãos, Estatuto, Insultos, Ameaças, Sofrimento, Auto-protecção, O Erótico, e Em Descanso. Recheado de belas figuras, ostenta na capa Auto-retrato: Bocejo (1783) do francês Joseph Ducreux. Não faltam representações visuais de “poses” hoje reprimidas como o abraço e o beijo. 

Dou um exemplo de um gesto retratado no livro. Nos gestos com os dedos, está o conhecido sinal do dedo médio a imitar o órgão sexual masculino, que remonta a Grécia e a Roma antigas. Na p. 127 está uma escultura monumental do italiano Maurizio Catellan (L.O.V.E, de 2010; significando Libertà, Odio, Vendetta, Eternità), erguida na Piazza degli Afari, em Milão, onde um dedo, em mármore de Carrara, está bem esticado para o céu, mas onde os outros estão cortados. O manguito, eternizado por Rafael Bordalo Pinheiro, bem comum no Sul da Europa, também é discutido. Morris escreve: “Em Portugal, há uma versão amplificada de insulto em que o gesto associa o manguito ao dedo indicador erguido, fornecendo simultaneamente dois insultos. Em alguns países, o gesto é considerado tão obsceno que uma pessoa pode ser presa por fazê-lo em público” (p. 138). Eu não sabia que este insulto “dois em um” era português, mas uma pessoa está sempre a aprender.

Desmond Morris tem uma relação íntima com a arte. Ele é desde há muito tempo um pintor surrealista (uma das últimas obras de Morris trata os artistas surrealistas: The Lives of Surrealists, Thames & Hudson, 2018). Morris enveredou pela arte surrealista, após ter perdido o pai, que escrevia literatura infantil, em combate na Segunda Guerra Mundial, quando ele tinha 14 anos. Em 1950 Morris fez a sua primeira exposição, em conjunto com Juan Miró. Em junho de 2020 abriu uma sua exposição individual numa galeria de Londres. Está agora, confinado, a pintar grandes quadros a óleo e a preparar uma enciclopédia sobre expressões humanas. 

No início de Poses, Morris conta uma história divertida onde entra o artista britânico Francis Bacon (1909- 1992), que tinha dois exemplares do Manwatching, um novo e outro bastante manuseado. O artista perguntou ao zoólogo se tinha pintado bem um babuíno a gritar. O zoólogo disse-lhe que sim apenas para o animar, porque para ele era óbvio que o babuíno não estava a guinchar, mas sim a bocejar. Bacon era conhecido por destruir à facada as suas obras de arte que achava mal feitas… Afirma Morris (pp. 6-7): “Um homem pode berrar, frustrado, virado para o céu, mas um babuíno não. Agrada-me pensar que esse quadro esplêndido sobrevive devido a uma mentirinha da minha parte.” Além de não terem pelos e de fazerem árvores de Natal, os homens, ao contrário dos macacos, gritam para o céu.

Poses é um belo livro e, por isso, uma ótima prenda de Natal. Além do mais, tem uma boa relação qualidade-preço. Ofereça-o, com um decidido gesto e um sorriso nos lábios, ainda que mascarado.