Revi na televisão o célebre debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, que mostra bem, como tenho dito e escrito, que o tempo é o verdadeiro juiz da verdade, ou, se preferirem, é o que permite fazer o julgamento das ideias e dos acontecimentos de um tempo passado. As dúvidas serão cada vez menos à medida que o tempo passa.
Neste debate de há 45 anos, verifica-se facilmente que Mário Soares estava do lado da razão, e aqueles que sabiam isso em 1975 merecem o nosso maior respeito. Respeito que pode existir também para com Álvaro Cunhal, mas pela luta que desenvolveu contra o anterior regime, onde esteve do lado certo da história. Mas não quando debateu o país com Mário Soares, já que a sua visão de Portugal e do mundo resultou distorcida, fosse pela ideologia que professava, fosse por mera teimosia, que o impediram de compreender que as suas propostas estavam já fora do seu tempo próprio, sendo, além disso, perigosas. Recordo, por exemplo, a questão dos SUV – Soldados Unidos Venceremos.
Depois do debate, Portugal ainda teve as nacionalizações, a ocupação de terras no Alentejo, os ataques dos sindicatos às empresas, o que levou ao fecho de muitas delas e ao desemprego de milhares de trabalhadores. Quando o processo terminou, o país estava derrotado, mais pobre. A perceção errada de Álvaro Cunhal desbaratou recursos e Portugal perdeu muitos anos para recuperar o tempo perdido. Em algumas circunstâncias, ainda não recuperou.
Enquanto Mário Soares defendia a liberdade plena para os portugueses de todos os partidos políticos, da esquerda e da direita, Cunhal propunha uma aliança do PCP com o PS e a exclusão de todos os outros partidos da vida política portuguesa, com acusações semelhantes às que hoje são feitas ao acordo do PSD com o Chega nos Açores. Enquanto Álvaro Cunhal pretendia o domínio do Estado na economia, acabar com os capitalistas e os latifundiários e sanear todos os contrarrevolucionários, Soares advogava a liberdade económica para as empresas, a economia de mercado, a valorização dos empresários e um Estado democrático e moderno. Enquanto Cunhal pretendia o controlo dos trabalhadores nos jornais e nas televisões, Mário Soares defendia uma comunicação social livre e responsável. Enquanto Soares pretendia uma descolonização democrática e eleições livres nas antigas colónias, e reconhecia os três partidos existentes em Angola, Cunhal defendia o reconhecimento do MPLA com a exclusão dos outros partidos oriundos da luta pela libertação e um regime político de partido único, ou seja, o modelo da União Soviética.
Sabemos hoje que Mário Soares estava no caminho do futuro, procurava um modelo de sociedade livre e democrática, baseada na igualdade de oportunidades e numa economia de concorrência, afastada das imposições do Estado. Sabemos também que Álvaro Cunhal defendia um modelo de sociedade semelhante ao do regime soviético, que não teria futuro, e foi esse modelo que, anos passados, terminou vítima das suas muitas contradições.
Podemos hoje constatar que as ideias de Álvaro Cunhal no debate de há 45 anos não mudaram muito junto dos seus herdeiros do PCP até aos nossos dias. Ao invés, podemos verificar que muita coisa mudou no PS e que os herdeiros de Mário Soares, para nossa desgraça, não têm tido a dimensão do original. Por exemplo, o cordão sanitário advogado por Cunhal para com os partidos da direita é hoje política oficial do Partido Socialista, onde o julgamento sobre a admissibilidade partidária, na filosofia política do PS, já não depende do voto dos eleitores, mas das ideologias dominantes. A sagrada separação de poderes de Soares tornou-se palavras vazias escritas na Constituição, o que permite a um Presidente da República ideólogo do Governo, em coordenação com o primeiro-ministro, a oportunidade de ambos poderem sanear uma procuradora-geral da República e um presidente do Tribunal de Contas. Ou que o mérito defendido por Soares como critério de seleção para cargos públicos se tenha tornado uma oportunidade de emprego para amigos da grande família socialista. Finalmente, a ética republicana de Soares é hoje um estribilho substituído pelos socialistas do nosso tempo pelo valor da consciência tranquila.
António Costa pode dizer agora que Álvaro Cunhal está perdoado. Mesmo aqueles a quem Álvaro Cunhal chamou a doença infantil do comunismo já têm lugar certo nas preferências do primeiro-ministro.
A geringonça representa, no nosso tempo, uma parte significativa da batalha política de 1974 e 1975, uma batalha em que Álvaro Cunhal e Mário Soares estariam do mesmo lado. Algo que sabemos impossível na fase que se seguiu ao 25 de Abril, mas também impossível hoje, porque a geringonça, formal ou informal, não passa de um meio caminho entre elementos diferentes de uma química improvável. Serve essencialmente para fazer de conta, para adiar o que não deveria ser adiado, ou a procura impossível de um meio caminho que o tempo já condenou.
Era essa procura do impossível que se verificou no debate entre Soares e Cunhal. Ambos sabiam dessa impossibilidade – o que os dividia era demasiado profundo para poder ser remendado, as intenções de ambos eram profundamente contrárias entre si, os seus modelos políticos não se encontravam em lado algum. Eram ambos demasiado inteligentes para ter ilusões.
Tenho sobre isso uma demonstração prática. No dia em que Mário Soares chegou a Portugal a seguir ao 25 de Abril, o MDP estava reunido em plenário num prédio da Avenida Infante Santo quando, a meio da tarde, surgiu Mário Soares. Saiu depois de uma palavras breves de saudação aos presentes, mas não sem que à saída tenha dito em voz baixa para os que o acompanhavam: “São todos comunistas”. Eu estava sentado próximo da porta e ouvi a sentença – era como se dissesse “aqui não há nada a fazer”.
O fim confessado deste texto é demonstrar que também hoje há um debate intenso na sociedade portuguesa que não se afasta muito dos termos do debate que aqui recordo. É o mesmo debate entre dois modelos de sociedade. É o debate entre a liberdade plena e os mais variados condicionamentos a essa mesma liberdade. Entre uma economia aberta de empresas que se pretendem livres, modernas e competitivas, e um Estado-patrão consumidor de recursos e fraco criador de riqueza. Entre uma sociedade de homens livres que aceitam o risco e a competição no respeito da igualdade de oportunidades e um Estado que subsidia a sobrevivência dos cidadãos mas não lhes fornece as competências necessárias para caminharem pelo seu pé. O debate de hoje é o mesmo de 1975, entre uma sociedade do mérito e da confiança nas capacidades dos portugueses para vencer num mundo em mudança e o isolacionismo protetor e defensivo de quem não acredita no futuro.
Talvez que a frase que melhor define o nosso regime político em 2020 tenha sido dita por um ex-ministro e agora deputado europeu ao justificar a bitola ibérica na ferrovia: “Ficaremos protegidos da concorrência externa”. Álvaro Cunhal não diria melhor.
Professor catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”