A pandemia e o transporte aéreo: o curto e o longo prazo

A pandemia e o transporte aéreo: o curto e o longo prazo


É indispensável que se realize um plano estratégico para o sistema aeroportuário português, contemplando o turismo e o desenvolvimento urbano e regional.


Ao longo de mais de seis décadas, o transporte aéreo tem demonstrado uma enorme resiliência face a crises de origem diversa, passando pela crise do petróleo na década de 70, a guerra Irão-Iraque na década de 80, a crise do Golfo na década de 90 e por aí fora. Mesmo depois da última recessão mundial, o transporte aéreo conseguiu ter uma recuperação notável e apresentar um crescimento estável durante os dez anos que se seguiram.

A relação entre o PIB e o crescimento do transporte aéreo tem sido estável ao longo destas décadas (1970-2013), com um rácio de crescimento do número de passageiros em relação ao PIB de 1,5, suportado por vários estudos apresentados pela ICAO (International Civil Aviation Organization). Comparativamente com a evolução do PIB, o transporte aéreo revelou sempre uma maior amplitude (entre +2 a 5%) na variação das tendências de crescimento da sua procura.

Pela primeira vez, o efeito da atual pandemia quebra esta longa resiliência do setor ao nível internacional e, naturalmente, também ao nível nacional. Na Europa, a comparação de tráfego entre 2019 e 2020 apresenta uma redução de cerca de 58% (semana de 14 de outubro de 2020). A redução de movimentos das principais companhias aéreas com operação na Europa é brutal. Observando os movimentos nessa semana de 14 de outubro como exemplo, a Ryanair reduziu 71%; a Turkish Airlines, 52%; a Air France, 56%; a Lufthansa, 71%; a KLM, 49%; e a EasyJet, 84%. O impacte da pandemia afeta de forma idêntica diferentes tipos de companhias aéreas. O transporte aéreo de mercadorias tem apresentado um declínio de capacidade de apenas 22%, bastante inferior ao que se tem passado com o transporte de passageiros.

Portugal não escapa a esta onda de impacte. Segundo as estatísticas publicadas pela ANAC, no segundo trimestre de 2020, os movimentos totais dos nossos aeroportos tiveram uma quebra de 91,16% face a 2019 e uma quebra de 97,47% no número de passageiros transportados; os aeroportos de Lisboa, Porto e Funchal com cerca de 93% de quebra de movimentos e cerca de 98% de redução de passageiros, Faro com mais de 96% de quebra nos movimentos e mais de 98% nos passageiros, e Ponta Delgada com 80% de redução de movimentos e cerca de 95% de redução de passageiros. Em síntese, o transporte aéreo em Portugal foi totalmente esmagado pelos impactes da pandemia e é, assim, o modo de transporte mais afetado por esta crise.

A indústria internacional (AirBus e Boeing) está a rever em baixa as suas previsões para os próximos anos. É já evidente para todos que a retoma não poderá manter os padrões de evolução do passado e a visão de futuro da indústria é uma redução de tráfego que oscilará entre 40 e 60% para o horizonte 2028-2038, com apenas três segmentos de mercado a apresentarem crescimento significativo (acima de 3,4%), a saber, os corredores Europa Central–Médio Oriente, Europa Central–Europa Ocidental, América do Sul–Europa Ocidental. No primeiro, Portugal só tem presença através de parcos acordos de code-sharing mas, nos outros dois, temos possibilidades reais de ter uma presença relevante no mercado através das nossas companhias aéreas, em particular mantendo o investimento no hub para a América do Sul.

Acresce que o turismo, um dos principais parceiros alimentadores do transporte aéreo, sofreu uma quebra brutal de receita que sugere serem necessários quatro a cinco anos para recuperação deste setor se não for fortemente estimulado e auxiliado.

Estamos, sem dúvida, perante uma crise no transporte aéreo sem igual. É, por isso, fundamental refletir sobre quais são as possibilidades de retoma deste setor. Esta crise é muito diferente das anteriores porque questionou a forma de vida das sociedades. Não é expetável que se mantenha o rácio entre a procura de transporte aéreo e o crescimento do PIB (o qual também será tímido nos próximos anos). É expetável que os segmentos de viagens de lazer e negócio tenham diferentes padrões de retoma: o primeiro, lento mas tendencialmente idêntico ao passado; o segundo certamente irá internalizar as novas formas de trabalho que se revelaram durante a pandemia, com mecanismos de contactos remotos, que no essencial garantiram a continuidade dos trabalhos mesmo sem viagens. Esta aprendizagem forçada irá certamente reduzir o tráfego de negócios, atraída pela correspondente redução de custos para as empresas.

Todas estas diferenças nos dizem que não podemos aplicar os anteriores modelos de previsão, com os anteriores padrões de retoma. O mundo mudou e, com isso, as relações causa-efeito que determinam a procura do transporte aéreo também mudaram. Precisamos de novos modelos explicativos, mais bem adaptados às dinâmicas deste “novo normal” cuja duração não é ainda conhecida. Mas mesmo que pudéssemos acreditar que os padrões de retoma reproduziriam de alguma forma o passado, só podemos perspetivar retomas do setor entre cinco anos (cenário otimista) e 15 anos (cenário pessimista).

Acresce ainda que esta crise ocorre num momento em que o transporte aéreo é alvo de medidas restritivas por conta do seu impacte nas alterações climáticas.

Nestas circunstâncias, e com elevada incerteza a reduzir a nossa capacidade preditiva, o risco das decisões de investimento aumentou muito. É, por isso, indispensável que se realize um plano estratégico (longo prazo) para o sistema aeroportuário português, contemplando o turismo e o desenvolvimento urbano e regional, principais vetores da escolha de Portugal como destino e de Lisboa com principal gateway. Não podemos perder a nossa posição de hub para a América Latina, mas temos de perceber onde queremos estar daqui a 15-20 anos e o que temos de fazer para lá chegar.

 

Professora e investigadora em transportes

Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico