Fazer contas à vida e investir na biodiversidade

Fazer contas à vida e investir na biodiversidade


Indivíduos, organizações e decisores políticos mobilizam-se para travar a perda de biodiversidade porque reconhecem as múltiplas dimensões que a ligam ao bem-estar humano.


Depois dos alertas de elevada mortalidade de aves e de estudos que os comprovam, quatro associações de produtores de azeite suspenderam a colheita noturna mecanizada de azeitona em olival superintensivo. Evitam assim a morte direta e sistemática de milhares de aves que pousam nas pequenas oliveiras para passar a noite. Quanto aos restantes produtores, espera-se que adotem a mesma resolução, em respeito da lei, e que haja lugar a uma fiscalização eficaz que evite a mortandade em série.

Também o crescente reconhecimento do papel dos organismos invertebrados para a segurança alimentar, pelas suas funções de polinização, controlo de pragas e manutenção da fertilidade do solo, impele a mudanças na forma de produzir, com menos dependência de pesticidas e fertilizantes e maior investimento em infraestrutura verde, como faixas de flores silvestres, sebes e bosquetes. O conhecimento disponível, embora ainda fragmentado, faz soar alarmes e pede mais que o princípio da precaução. É o caso da Alemanha, onde dados dos últimos 20 anos revelaram quedas de 70% na abundância de artrópodes em paisagens agrícolas.

Num outro cenário, o da Ria Formosa, repete-se o guião. Em 20 anos, o número de cavalos-marinhos caiu de 2 milhões para 100 mil indivíduos. As causas? Captura ilegal e destruição das pradarias marinhas por redes de arrasto, por dragagens dos canais de navegação e pelo trânsito excessivo de barcos. Mais uma vez, procurou-se travar e reverter a tendência. Em março de 2020 foram delimitadas duas pequenas áreas de refúgio livres de perturbação – uma medida essencial, mas ainda assim tímida, dada a dimensão do estrago.

Estes três exemplos, provenientes de realidades distintas, são preâmbulo para três reflexões:

Primeiro, a biodiversidade importa. Indivíduos, organizações e decisores políticos mobilizam-se para travar a perda de biodiversidade porque reconhecem as múltiplas dimensões que a ligam ao bem-estar humano, desde a sobrevivência a valores éticos. Uma sondagem do Eurobarómetro de 2019 mostra que a totalidade dos portugueses inquiridos e 96% dos europeus concordam que temos a responsabilidade de proteger a natureza e que esta é uma aliada fundamental para fazer face às alterações climáticas. No entanto, este consenso parece estar em contracorrente com a magnitude das perdas a que vamos assistindo. O que nos leva ao segundo ponto.

A perda de biodiversidade, por ter um caráter progressivo e sistémico, pode passar despercebida e ir sendo interiorizada como um novo normal até se perder a noção e memória do passado. A redução das populações selvagens (indivíduos da mesma espécie que vivem numa determinada região) encontra-se generalizada. Um estudo de 2019 com dados de monitorização de quase 90% das populações de aves nos Estados Unidos revelou uma perda líquida de cerca de 3 mil milhões de indivíduos, ou seja, 30% da abundância registada em 1970.

A falta de memória também nos leva a subestimar os ganhos. É o caso do regresso da cabra-montês às serras do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Depois de caçada até à extinção em grande parte da sua área de distribuição, a cabra-montês desapareceu das serras portuguesas no final do séc. xix. Regressou um século depois, no seguimento de esforços de repovoamento realizados em território galego. Hoje, a população, em plena recuperação, soma umas poucas centenas de indivíduos. O número é modesto, mas já se erguem vozes equacionando a sua caça no parque nacional. Isto leva-nos ao terceiro ponto.

As medidas de gestão e conservação da biodiversidade, quando implementadas, são largamente reativas, ao invés de proativas, e frequentemente circunscritas no seu âmbito de ação. Depois da casa roubada, põem-se trancas na porta, mas ficam as janelas abertas. No entanto, como em tantas outras áreas, a prevenção é mais custo-eficiente que a reparação (não obstante o papel fulcral das ações de restauro de espécies e ecossistemas).

Os efeitos da pandemia não podem ser hoje argumento para relaxar ou secundarizar as medidas de gestão e conservação da biodiversidade. A perda de biodiversidade, muitas vezes evitável, não é um mero dano colateral, mas a erosão, quantas vezes irreversível, do património comum, com custos que nos chegam de forma direta ou indireta, acabando por agravar as dificuldades que hoje enfrentamos. Mais do que nunca, a gestão danosa ou a mera inércia e condescendência com que se desbaratam os recursos naturais deve dar lugar a uma gestão inteligente em que o desenvolvimento social evolua com o património natural, e não à custa da sua delapidação.

A conservação da biodiversidade, por via da Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030, é um dos pilares do Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), desenhado para relançar a economia europeia. As contas já foram feitas. Os ganhos gerados pela conservação e restauro de ecossistemas compensam largamente o investimento. Os benefícios traduzem-se em maior capacidade de resposta ou menor exposição a inundações, secas, fogos e pragas, e, portanto, em menos compensações e indemnizações (e, naturalmente, danos humanos), em maior produtividade dos stocks pesqueiros e das culturas polinizadas, em ambientes naturais de excelência, entre muitos outros contributos.

O pacto está lançado, a opinião pública está alinhada, as soluções são conhecidas, os ganhos também – só falta concretizar. De pouco serve uma visão estratégica se não der lugar à mudança.

 

vania.proenca@tecnico.ulisboa.pt

Investigadora no MARETEC – Centro de Ciência e Tecnologia do Ambiente e do Mar, Instituto Superior Técnico