Quase todos nós, trabalhadores nos setores público e privado, estamos vivenciando uma mudança radical em nossos costumes durante a pandemia de Covid-19. Trabalhando de forma remota em nossas casas, de forma transitória ou permanente,experimentamos uma realidade que parece que irá se tornar cada vez mais comum. Rotinas de trabalho, afazeres domésticos e cuidados com familiares se fundiram em algo para muitos ainda novo e desconhecido.
Envoltos com as diversas obrigações adicionais em nossos horários de trabalho, estamos, mais intensamente, à mercê de transtornos psicológicos como depressão, ansiedade e pânico, inclusive, em alguns casos, lidando com situações de instabilidade econômica e até com luto familiar. A sensação de alguma segurança que acompanhava nosso cotidiano, desapareceu.
Tudo isso pode impactar nossa motivação, podendo levar a situações em que os interesses pessoais se sobrepõem aos profissionais, influenciando a tomada de decisões éticas mais arriscadas. A verdade é que o trabalho constante em nossas casas – ainda mais em períodos sensíveis como o que estamos vivendo – pode acarretar mais riscos de corrupção e fraude. Nesse sentido, a Comissão Independente Contra a Corrupção de Nova Gales do Sul, na Austrália, publicou, em abril de 2020, um relatório sobre riscos de corrupção durante a pandemia de Covid-19.
As organizações moldam a forma como seus funcionários pensam, sentem e agem, de acordo com uma cultura criada – e fomentada – quando estamos trabalhando presencialmente. O ambiente físico, onde exercemos nossas atividades profissionais, desempenha um papel expressivo em nossas decisões e escolhas, sejam éticas ou não. Além disso, nos vermos como membros de um grupo social nos confere uma “identidade” e nos ajuda a determinar que tipo de comportamento seria de nós esperado.
Em nossos ambientes de trabalho, buscamos, inconscientemente, normas sociais para entendermos como nos comportar, principalmente diante de dilemas éticos e situações incertas. O contexto nos ajuda a identificar o que é “fazer a coisa certa” – e o que não é – em conformidade com o que nosso grupo comunica e demonstra. Sem essas “pistas” ao nosso redor podemos ter mais dificuldade em determinar quais tipos de comportamentos seriam apropriados.
Frente à pandemia de Covid-19, passamos, repentinamente, a vivenciarmos novos ambientes e formas de trabalho, ainda pouco compreendidos pela maioria das organizações. As equipes de trabalho e chefias já não estão mais fisicamente próximase, consequentemente, os regulamentos e orientações também parecem mais distantes. Nesse contexto, ações preventivas à fraude e corrupção, como treinamentos presenciais, testes, controles e avaliações poderão não ser realizados durante o período de trabalho remoto.
Como consequência, poderemos esperar uma série de quebras da integridade devido à diminuição ou ausência de controles de detecção. Além do recebimento ou oferecimento de vantagens indevidas, com tantos trabalhadores atuando de forma remota, podem ser mais comuns nesse período o aceite de brindes e presentes inadequados. Situações de conflitos de interesses também podem ser mais comuns, como o envolvimento em atividades profissionais secundárias ou consideradas impróprias. O roubo ou o uso indevido de informações confidenciais das organizações também são riscosque podem crescer.
As organizações precisam reconhecer esses novos fatores de risco e atentarem-se para mitigá-los de forma eficaz. Programas de compliance anticorrupção precisam ser urgentemente readaptados. Avaliações de risco devem ser refeitas, analisando os novos processos de trabalho que os funcionários devem seguir em suas casas.
Pode haver atividades em que a tecnologia auxilie, como treinamentos adaptados, realizados à distância, ou uso de sistemas que vigiam as máquinas dos funcionários. Todavia, muitas dessas ações possuem altos custos, demoram para serem instituídas e, às vezes, podem não ser tão eficazes.
Além da tecnologia, precisamos pensar em soluções mais humanas. Abordagens mais simples podem ser igualmente ou até mais eficazes. Relembrar regularmente as equipes de suas obrigações éticas,fornecendo orientações claras sobre riscos de fraude e corrupção, é uma prática que deve sempre ser incentivada – tanto presencialmente, quanto à distância.
O papel das lideranças nas organizações tornou-se ainda mais relevante, sendo as chefias imediatas um dos primeiros controles de atos de fraude e de corrupção. Um bom gerenciamento remoto de funcionários se faz no cotidiano, incentivando que se sintam capacitados e habilitados em suas tarefas diárias, e essa supervisão constante também pode auxiliar a prevenir e a detectar possíveis falhas e desvios.
Os líderes possuem ainda o papel de promover a segurança psicológica de suas equipes.Contatos regulares com os subordinados, por telefone, vídeo ou outros meios remotos, assim como o uso de plataformas de colaboração online, são recomendados para se manter os níveis de coesão e integridade. Breves lembretes sobre as obrigações de ética e integridadedos funcionários podem ser eficazes e devem complementar as comunicações regulares.
Há que se considerar, portanto, que a fraude e a corrupção são fenômenos que possuem grande capacidade de se ocultarem e rapidamente se adaptarem a novas realidades – e essa tendência tende a se agravar numa longa rotina de trabalhos em casa, em uma época em que nos sentimos amedrontados, pressionados a manter a produtividade e cercados por notícias desanimadoras. Diante desse novo e mutante contexto, as organizações públicas e privadas devem reinventar seus controles internos e procedimentos de compliance para evitar que a pandemia não dissemine outros males como a corrupção e a fraude corporativa.
Auditor da Controladoria-Geral da União do Brasil (CGU) e membro do OBEGEF