A pandemia da covid-19 constitui um dos maiores desafios a confrontar a humanidade no último século. Países em todo o mundo enfrentam diariamente um caos sanitário, social e económico que não dá mostras de abrandar. No meio desses esforços, é hoje por demais evidente que uma ou mais vacinas serão cruciais para que as nossas vidas recuperem alguma da normalidade pré-2020. E o mundo encontra-se de facto em suspenso, esperando ansiosamente por vacinas que ponham um fim ao pesadelo.
As estratégias de suavização da transmissão do vírus SARS-CoV-2 – máscaras, distanciamento social, quarentenas, confinamentos – têm protegido com sucesso a maioria das pessoas. Paradoxalmente, os não infectados permanecem sem imunidade contra o vírus e portanto vulneráveis a novas vagas de infecção. É verdade que o aumento gradual dos casos positivos permitirá, eventualmente, alcançar a imunidade de grupo. Nesse estádio desejável da pandemia, o número de pessoas que adquiriu alguma imunidade por via da infecção natural será suficiente para prevenir surtos de grandes proporções. Porém, e não sendo certo que tal possa acontecer em tempo útil e a que custo, parece claro que uma das melhores estratégias para reduzir o contágio passa por aumentar a imunidade da população com recurso à vacinação massiva [1].
O paradigma clássico de desenvolvimento de uma vacina assenta na realização de uma sequência de etapas, que incluem estudos fundamentais sobre os mecanismos da doença, investigação aplicada à concepção da vacina, testes pré-clínicos em modelos animais, ensaios clínicos faseados em pessoas e implementação de processos para manufactura industrial. Os resultados obtidos nestas etapas, e em particular nos ensaios clínicos, são escrutinados de forma rigorosa pelas entidades reguladoras de modo a garantir a segurança e eficácia da vacina. Sempre que os resultados o justifiquem, essas entidades vão então permitindo avançar de uma etapa para a seguinte através de autorizações sequenciais. O processo é globalmente moroso, envolvendo tempos de desenvolvimento de 10 a 15 anos [1].
O alastrar rápido da covid-19, mobilizou centenas de investigadores e instituições académicas, empresariais e governamentais em todo o mundo, que prontamente iniciaram uma corrida para alcançar uma ou mais vacinas. Face à urgência da situação, e em oposição ao paradigma de desenvolvimento clássico, adoptou-se um processo mais expedito em que as diferentes etapas ocorrem em paralelo e sem conhecimento completo dos resultados de etapas anteriores. A expectativa é que será possível comprimir os tempos de desenvolvimento para uns inauditos 1–2 anos.
Actualmente existem pelo menos 166 vacinas nas fases pré-clínica e clínica, tendo uma mão cheia das mais promissoras atingido já a fase final de ensaios clínicos. Em estudo incluem–se vacinas do tipo clássico (e.g. vírus vivos atenuados, vírus inactivados, vacinas de subunidades) e inovações mais recentes (e.g. partículas quasi-virais, vacinas recombinadas) ou nunca antes aprovadas (e.g. vacinas de RNA e DNA). O arsenal de conhecimentos científicos por detrás deste autêntico zoo de vacinas é tremendo e resulta da acumulação de uma miríade de pequenos avanços e contributos incrementais que ao longo dos tempos foram sendo modificados, ampliados e fundidos com as ideias e resultados de numerosos intervenientes.
Os especialistas apontam para o licenciamento da primeira vacina da covid-19 durante o primeiro semestre de 2021, prevendo que mais 6 ou 7 surjam na sua esteira [2]. A acontecer, essas excelentes notícias não garantirão por si só o aparecimento de milhões de doses e a vacinação efectiva da população mundial. O estabelecimento de programas de imunização abrangentes constituirá uma tarefa ciclópica, plena de desafios técnicos, económicos e sociopolíticos. Para lá dos recursos financeiros, serão necessárias instalações e conhecimentos para implementar os bioprocessos para produção massiva dos diferentes tipos de vacinas, a definição de grupos com acesso prioritário (e.g. profissionais de saúde, idosos), redes extensas de centros de vacinação com pessoal bem treinado, acompanhamento da situação imunológica das populações e habilidade política para contornar proteccionismos nacionais e focar esforços nas regiões mais afectadas. Não parecem existir muitas dúvidas de que essa implementação será desigual, assíncrona e variável. Além disso, as vacinas poderão ser apenas parcialmente protectoras por um período de tempo curto, reduzindo a severidade e mortalidade da doença, mas não conferindo uma protecção de longo duração. Por estas razões, não devemos esperar passivamente por uma vacina milagrosa, mas antes continuar a investir na testagem, rastreio e intervenções comportamentais. Até lá, o mundo continua infectado e ansioso.
[1] Jeyanathan, M. et al., Immunological considerations for COVID-19 vaccine strategies, Nature Rev Immunol., 30 (2020) 377-345.
[2] Fusaro, R., On pins and needles: Will COVID-19 vaccines ‘save the world’?, McKinsey & Company (Jul 29, 2020).
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