Regina Guimarães. Uma marginalidade perplexa e abraçada

Regina Guimarães. Uma marginalidade perplexa e abraçada


Um depoimento da poeta e tradutora Margarida Vale de Gato sobre a amizade e colaboração com Regina Guimarães


Regina Guimarães, quando se entusiasma ou quando levanta a voz, não é sobre si mas sobre causas, sobre consequências de alguns pensamentos que ela gosta de levar até à raiz. O que a torna afavelmente marginal, ferreamente radical. Com uma inteligência de uma energia notável, combate, denuncia a repressão e a tacanhez, e enfrenta a preguiça amiufada que as permitem (recentemente, uma simples nota de rodapé levou à censura de toda uma publicação pelo Teatro Municipal do Porto). Penso que ela se posiciona deliberadamente nas margens por serem estas, maleáveis, que veiculam o desbravamento (é difícil avançar na grande corrente sem se quebrar a espinha), fazendo barulho quando preciso, mas obrando num discreto tom menor, recusando comercializações e grandes produções – em editoras pequenas e artesanais, em companhias de teatro emergentes, participando com as suas letras no rock alternativo ou pop-cabaré, fazendo filmes experimentais ao lado de Saguenail. 

O seu trabalho de tradutora, que foi por onde eu primeiro vim dar a ela, é exemplar do que estou a querer vincar sobre a sua natureza artística e intervenção intelectual; de acordo com um texto que escreveu este ano para a Granta portuguesa: “O tradutor é escritor. Minúscula mas musculadamente.”  Regina começou no ofício, para treinar a mão e ganhar alguns tostões, como “tradutora-sombra” de um outro profissional com mais guitarras do que unhas; depois, facilitou que se divulgassem teses, comunicações académicas, filmes (“Nunca desistirei de traduzir gratuitamente para projetos que me parecem necessários e empolgantes”). Onde mais se notabilizou foi no teatro e no género dificílimo das letras de canção, dedilhando a fina literatura de John Arden, Sarrazac, Molière, Corneille, Claudel – autores graúdos, sem dúvida, mas em cujos textos a intervenção dela teve menos a ver com o estatuto de canonizados como com o potencial de um espetáculo instigador para o momento premente. 

Assim, os resultados que alcança Regina, esforçados, discretos, aplaudidos raramente, também não vão para o centro da ribalta, mas viabilizam as luzes. Para além disso, o trabalho dela, em que a imagino perdendo noites aplicada e só, é quase sempre “abraçado” a alguém: a Saguenail, cúmplice de toda a vida, a uma banda de músicos, uma companhia de lobos, um ideal de loucos. Isto está patente também no seu mais recente filme, Caderno do Confinamento (2020),  uma montagem de mais de uma centena de contributos comunicando por “imaginação analógica” (cito de memória as palavras de Regina na estreia), gente e objetos, ensaios musicais, fitas e fintas e passes coreográficos em cantos da casa, sobre a desolação do tempo. 

Algo de semelhante se passa na sua poesia:  interpela e procura pôr em comum; há uma vontade de diálogo, que depois se torna numa provocação do contraditório: “escrevo pois tentando ainda / acertar entre os dois olhos / da cara rugosa e linda / do atirador de facas” (p. 71). Raramente há uma síntese feliz, ou fácil; embora o empréstimo frequente da prosódia popular, das redondilhas da cantiga, marque um compasso conhecido, este não serve para embalar, antes para driblar (o mesmo faz a poeta aos provérbios). E não há nada que seja claro, nesta poesia, a não ser que o pensamento é paralelo e cruzado com a praxis, e é assim que às vezes um poema pode denegar um outro (por isso, em “A Nau Não”, se diz no final “Aquilo que vês não é, / por isso passa a ser intensamente”, p. 52). Outra coisa: se muitos destes poemas são sobre mulheres e alguns com violência, eles são também uma interrogação do que fazemos no mundo às forças que temos e enfrentamos.

Tenho tido o prazer, no último ano e meio em que nos tornámos próximas, de acompanhar pontualmente aquilo que ela anda a tramar, e até o corpo da correspondência, o relato do processo, vai muitas vezes em versos, como estes: “entende / ou tenta / que isto não é para ser perfeito / é para servir de caminho / para o que vem a seguir.” E o que eu entendo é a súmula de uma dialética, para além de hegeliana ou até materialista, ardorosamente revolucionária. Essa ênfase no devir, carregando a totalidade do que foi (contra-)dito, leio-a também no feliz título desta antologia organizada por Rui Manuel Amaral, Antes de mais e depois de tudo. É uma alegria surgir este livro, cartão de visita para, citando o organizador, “quantidades astronómicas de poemas” (p. 98) em livros de edições limitadas, dispersos por periódicos, inéditos. E, contudo, a grande maioria encontra-se acessível a todos no gesto “de defesa ativa do domínio público” afirmado pela plataforma editorial Hélastre, o nome-signo da dupla Saguenail e Regina de Guimarães. É este um convite também para nos deixarmos de distrações e do esquecimento de tudo o que está na rede e não saltita imediatamente no retorno de um efémero coração, para mergulharmos nessa obra conjunta, cruzada, paralela, e sempre, como se indica na homepage do endereço https://helastre.wordpress.com/, “em constante inacabamento” – sempre por vir, já que, se, por contingência, o poema acaba, “sendo chave inventa o fim da fechadura” (Antes de Mais e Depois de Tudo, p. 74).