António Tenreiro, um traga-léguas

António Tenreiro, um traga-léguas


António Tenreiro, um militar nascido em Coimbra em 1485, é, apesar de desconhecido, um dos mais extraordinários viajantes da era dos Descobrimentos. Neste seu livro descreve as duas grandes viagens a pé que realizou no Médio Oriente.


Gosto de ir às feiras do livro à espera de ser surpreendido. Desta vez fui-o com uma esplêndida edição pela Livros de Bordo da obra de António Tenreiro Itinerário da Índia por terra a este Reino de Portugal, que teve primeira edição em Coimbra, em 1560, na oficina de António de Mariz, e segunda edição, que serviu de base ao livro atual, ainda em Coimbra, em 1565, na oficina de João de Barreira. As edições originais são muito raras: nem a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra nem a Biblioteca Nacional as possuem. Em Portugal, só há uma cópia da primeira edição na Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa e só há uma cópia da segunda na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Lá fora há pouquíssimos exemplares das duas: em Madrid (Biblioteca Nacional de Espanha), em Londres (British Library), em Roma e em Oxford. O livro era dedicado ao rei D. Sebastião, com seis anos à data da primeira edição, mas já rei desde os três… Tem havido outras reedições ao longo do tempo que hoje só se encontram em alfarrabistas. Curiosamente, há uma edição alemã recente (Estugarda/Viena: Erdmann, 2002), com o seguinte título em tradução literal: Um carteiro através da Pérsia: da Índia a Portugal”.

António Tenreiro, um militar que, nascido em Coimbra em 1485, rumou à Índia, é, apesar de desconhecido do vulgo, um dos mais extraordinários viajantes da era dos Descobrimentos. Neste seu livro descreve as duas grandes viagens a pé que realizou no Médio Oriente (os mapas estão na Wikipédia). A primeira teve lugar em 1523-25, partindo de Ormuz (uma cidade-ilha, então possessão portuguesa, à entrada do golfo Pérsico) até Tabriz (então capital do Império Persa e hoje cidade iraniana), acompanhando a embaixada portuguesa, chefiada por Baltazar Pessoa, ao soberano persa, o xá Ismail, que morreu por essa altura. Finda a missão diplomática, Tenreiro aventurou-se numa peregrinação a Jerusalém, destino que nunca alcançaria: viajando com cristãos arménios, foi preso pelos turcos em Diyarbekir (no sudeste da atual Turquia) e, espoliado dos seus bens, foi levado sob escolta para o Cairo, através da Síria, da Terra Santa e da Jordânia, para ser presente para interrogatório ao grão-vizir otomano, que então estava no Egito. Libertado das grilhetas, para o que terá sido ajudado por um físico judeu que tinha estado na Ibéria, desceu o Nilo, chegou a Alexandria e viajou para Chipre, onde decidiu um tanto inesperadamente regressar à Ásia. Chegado à costa mediterrânica, empreendeu uma nova travessia do deserto, onde são hoje a Síria e o Iraque, entre mil e um perigos, até voltar são e salvo a Ormuz. 

Passados três anos aceitou a incumbência do capitão de Ormuz de trazer correio dele ao rei D. João iii, fazendo de novo a pé o caminho até ao Mediterrâneo, numa viagem em 1528-29. Alcançado após nova travessia do deserto o porto de Trípoli, no Líbano, navegou primeiro até Chipre e depois até Itália (cercanias de Veneza). Percorrida a pé a bacia do rio Pó, seguiu de novo por mar de Génova até Valência, de onde foi, via Toledo, até Lisboa, onde logo o rei o recebeu. Era “correio expresso”, pois a carreira da Índia demorava, dando a volta pelo cabo da Boa Esperança, uns seis meses, ao passo que, por terra, ele terá demorado cerca de metade. Porque não se ia então de Portugal para o Oriente primeiro pelo Mediterrâneo e depois por terra? Porque o território do Médio Oriente era demasiado perigoso não só pelas suas adversidades naturais – era na sua maior parte um tórrido deserto -, mas também, e sobretudo, pela sua ocupação maioritária por muçulmanos (seguidores da “lei de Mafamede”). Em reconhecimento dos seus serviços, D. João iii fê-lo cavaleiro da Ordem de Cristo e deu-lhe uma tença. Pouco depois da chegada, Tenreiro foi atacado no Rossio por desconhecidos (a Baixa lisboeta revelou-se muito mais perigosa do que o Médio Oriente!). O físico do rei ajudou-o a recuperar das cutiladas, desferidas talvez a mando de alguém acusado de corrupção nas cartas que ele trouxe. Voltou para a sua terra natal, onde casou. Não se sabe bem quando morreu, mas tal deve ter ocorrido entre as duas edições do seu único livro. 

Antes de Tenreiro, já tinha havido grandes viajantes. São notáveis as anteriores viagens de Frei Pantaleão de Aveiro, um franciscano português que escreveu o Itinerário da Terra Santa e suas particularidades em 1593, um manuscrito que inspirou Fernando Campos a escrever o seu romance Casa do Pó, e de Pero da Covilhã, o intrépido explorador que, enviado por D. João II, partiu em 1487 para o Egito e daí seguiu para a Índia, passando por Ormuz, navegando a seguir até à costa oriental de África e chegando finalmente à Etiópia, a terra do lendário Prestes João, onde acabou por falecer em 1530 (o Conde de Ficalho escreveu, no séc. xix, Viagens de Pero da Covilhã, reeditadas em 2018 pela Fronteira do Caos). Mas Tenreiro foi o primeiro português a contar uma viagem de exploração numa obra impressa, muito anterior à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que só foi publicada em 1614. Facto curioso é que o relato de Tenreiro foi impresso, em várias ocasiões, em anexo à Peregrinação. 

Depois de Tenreiro houve outros grandes exploradores lusos. O jesuíta António de Andrade, natural de Oleiros, foi, em 1624, o primeiro europeu a visitar o Tibete, e Brito Capelo, de Palmela, e Roberto Ivens, de Ponta Delgada, foram pioneiros ao irem, em 1884-85, de Angola à contracosta, título de um seu livro. O livro As Grandes Viagens Portuguesas, organizado por Branquinho da Fonseca, saído na Portugália Editora em 1964 (foi reeditado pela Relógio d’Água em 2017), reúne textos de Tenreiro, Mendes Pinto, Andrade e Capelo, que acrescem a esses verdadeiros clássicos que são os relatos de Álvaro Velho do descobrimento da Índia e de Pero Vaz de Caminha do descobrimento do Brasil. 

A nova edição de Tenreiro está muito bem produzida, com sábios comentários do historiador Rui Loureiro, como é, aliás, norma nos livros da Livros de Bordo, uma editora independente de Portimão que se especializou em livros de viagens (começou em 2014 com Paisagens da China e do Japão, de Wenceslau de Moraes). Entre os títulos semelhantes do seu catálogo destaco o Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão, do jesuíta Luís Froes, escrito em 1585, e Cartas do Tibete, do seu confrade António de Andrade, escritas em 1624-33. São livros que devem orgulhar não só a editora, mas também os leitores que os possuem.

Logo no início do relato da sua primeira viagem, que por ser mais longa ocupa a maior parte do livro, Tenreiro conta como tomou a decisão de viajar: “Vendo eu aperceber o embaixador para a ida, determinei de ir em sua companhia. Assim por cumprir com meus desejos, que eram ver mundo, como também por me parecer necessário mudar a terras, por me temer de um homem com que tive umas brigas, mais rico do que cumpria para a quietação de quem se temia dele”. Bela construção neste português do séc. xvi! Se calhar foi esse o mandante do assalto no Rossio…

O autor, que falava árabe e persa e arranhava o turco, procura ser imparcial no seu relato. Descreve a geografia e os costumes, incluindo vestuário e alimentação. Por exemplo, sobre os reis persas disse que eram tanto mais estimados quanto mais bebessem sem se embebedarem. Por falta de bagagem cultural, não teve olhos para as civilizações milenares, como a da Mesopotâmia, que deixaram ruínas na paisagem que percorreu. Mas assinalou alguns locais bíblicos, como o monte Ararat, onde a Arca de Noé terá chegado, a terra onde nasceu Sansão e o poço dos leões do profeta Daniel (“Deus mandou um anjo que fechou a boca dos leões”). Revela-nos que havia comunidades cristãs mesmo em sítios dominados por outras religiões. Reconhecemos no seu relato de viagem várias terras que surgiram nas notícias das guerras no Iraque e na Síria, por exemplo Baçorá e Alepo. 

Vejamos outro excerto da prosa de Tenreiro. Na segunda viagem encontra-se em Baçorá com “el-rei da dita cidade, que era um mouro velho arábio, muito prático”. Teve de insistir muito, pedindo-lhe um guia mouro. Mas, por fim, “mandou chamar o dito mouro, que andava em aduar de alarves junto da dita cidade, em o deserto. E ele chegado, dei-lhe 80 cruzados, e comprei um dromedário para ele e outro para mim, e assim odres para levar água, biscoitos, tâmaras, passas, e farinha para mantimentos ditos dromedários, de que se lhe fazem uns pelouros de massa rija, com que se sustentam tanto tempo até desfalecerem de todas as forças”. Partiram à aventura, fugindo das feras e dos ladrões: “E por muitas vezes vimos leões, ursos e onças, em que por vezes nos meteram em afronta e se queriam chegar para nós, e nós desviando-nos deles e tangermos muito rijo os dromedários, até que os perdemos de vista”. O livro traz uma gravura copiada do original com os dois homens montados nos dromedários.

Uma palavra final sobre Coimbra, a terra de Tenreiro. Estou em crer que os gestores da cidade, uns grão-vizires instalados no deserto que eles próprios criaram, nem conhecem este “coimbrão das Arábias”. Quem for à urbe vizinha de Cantanhede encontra uma estátua de Pedro Teixeira, o corajoso explorador do Amazonas, num centro cuidado. Em contraste, a Rua da Moeda, onde morou António Tenreiro e que desemboca na câmara municipal, está descuidada, como o resto da Baixa.