Os párias dos mares

Os párias dos mares


Para complicar as coisas, nessa ilha tão terrível em que até o próprio Satanás se aborrece, há seis meses que sobrevive um grupo de náufragos, liderado pelo Conde de Montignac, nomeado governador da ilha da Tortuga, na companhia de dois filhos e os sobreviventes da comitiva que o acompanhava.


Sempre houve pirataria nos mares, por vezes confundindo-se, não sem motivos, com o corso, ataque autorizado aos navios inimigos, por embarcações que não sendo da marinha de um país estão ao seu serviço com uma liberdade de acção generosa. Mas a pirataria, embora heterogénea, tem sempre por fim o saque de bens e pessoas e não cuida de patriotismos. Estamos, em muitos casos a falar de fora-da-lei absolutos, párias que renegam a autoridade dos estados, constituindo microsociedades, sempre efémeras, em ilhas e portos de que se apropriam, nomeadamente nas Caraíbas, mas também nas próprias embarcações que são o seu, digamos, ganha-pão. Um saque bem sucedido é um pecúlio arrebatado graças a muita disciplina, um quase ascetismo, que, uma vez conseguido, é dissipado em festins pantagruélicos, como se não houvesse amanhã. E muitas vezes não havia. Giles Lapouge, autor do notável ensaio sobre estes “párias do mar” – Os Piratas (1987, edição portuguesa na Antígona) – refere-se à curtíssima esperança de vida desta gente odiada que se fazia temer.

Mathieu Lauffray (Paris, 1970, também realizador de cinema e videojogos), apresenta uma prometedora personagem e uma narrativa que tem tudo para ser um marco: Raven é um pirata destemido, raptado ainda jovem enquanto servia como grumete num navio de carreira, e é também um romântico e um pé-frio, como dizem os brasileiros. De tal modo azarado que os companheiros ostracizam-no. Nada, porém, que lhe diminua o ânimo, em especial quando a possibilidade de um tesouro perdido no século anterior, enviado por Cortez ao rei de Espanha e nunca chegado ao destino, estará por ali, numa ilha à mão de semear. Esse território, não longe de Guadalupe e ignorado pelas cartas marítimas, leva o inspirador nome de “Enfado do Diabo”: acesso difícil e indígenas não só hostis como canibais. Raven não é contudo o único interessado, tem de disputar a avidez com o mais terrível flibusteiro da região, com fama de crueldade inexcedível: Lady Darksee, uma mulher, pois claro, por sinal bela, mesmo com a cicatriz que ostenta por baixo do olho direito. E apesar de ficção, Lauffray não foi demasiado longe, pois a existência de algumas mulheres no meio, mesmo comandando barcos piratas, está documentada. Para complicar as coisas, nessa ilha tão terrível em que até o próprio Satanás se aborrece, há seis meses que sobrevive um grupo de náufragos, liderado pelo Conde de Montignac, nomeado governador da ilha da Tortuga, na companhia de dois filhos e os sobreviventes da comitiva que o acompanhava. Raven e Darksee, a sua némesis, aí irão encontrar-se, para estupefacção de Montignac, e depois para algo pior. A fama de desumanidade que persegue a flibusteira não tardará a confirmar-se.

Acção, rebaldaria, solidez nas referências, um previsível triângulo amoroso e alguma inovação na caracterização das personagens, em que a rebeldia é algo mais que a marginalidade, em que o desprezo das classes dominantes por esta escória é retribuída na mesma moeda, para além do já referido “internacionalismo” endógeno e exógeno: as tripulações são heteróclitas quanto à nacionalidade e etnia e a noção de pátria, como se disse, não é popular. As pranchas são esplêndidas parecendo que se alargam, e o carisma das personagens é bastante palpável: imagine-se, para o protagonista, um espécime cruzado de Blueberry e Wolverine, com um traço que lembra umas vezes Hugo Pratt, outra Jordi Bernet, mas que no fundo é e será Mathieu Lauffray. Esplêndido, pois.

Raven t. 1 Némésis
Texto Mathieu Lauffray
Desenho Mathieu Lauffray
Editora Dargaud, Paris, 2020

 

BDteca

Uma lista para a Feira do Livro. Há quase meio século que este leitor não falha uma Feira do Livro em Lisboa, onde chega com uma lista que nunca cumpre e de onde sai com livros que nem sonhava que existissem. Nesse então, recorda-se de um Tintim em África [sic] e de O Lago dos Tubaroes em pobres edições brochadas da Record ou de umas comic strips da extinta Portugal Press, com material da King Features Syndicate, tiras que povoavam os jornais.
Este ano o resultado não será diferente. Ainda assim, uma possível listinha de desejos:
 A Entediante Vida de Morte Crens, por Gustavo Borges (Bicho Carpinteiro)
A Época das Rosas, de Chloé Wary (Planeta Tangerina)
Baby Blues #37 — Vá para Fora Cá Dentro, por Rick Kirkman e Jerry Scott (Bizâncio)

 

Comanche (edição integral), por Hermann & Greg  (Ala dos Livros);
Duke – A Última Vez que Rezei, por Hermann & Yves H. (Arte de Autor)
Edibar, vol. 2, por Lúcio de Oliveira (Ediçoes Polvo)
Harley Quinn Através do Espelho, por Mariko Takami (Levoir)
História do Mundo em Banda Desenhada, de Larry Gonick (Gradiva)
História do Universo em Banda Desenhada, por Larry Gonick (Gradiva)
Mindex, por Fernando Dordio, Mário Freitas e Pedro Cruz (Kingpin Books)
O Castelo dos Animais – 1. Miss Bengalore, por Dorison e Delepe (Arte de Autor)

 


O Vale do Imortais 2 tomos) Blake e Mortimer, de Yves Sente,Teun Berserik & Peter Van Dongen (Asa)

 

Tex – Patagónia, de Mauro Boselli & Pascuale Frisenda (Polvo)
Uma Loja de Doidos, de Derradé (Polvo)
Verões Felizes (dois tomos), por Zidrou & Jordi Lafebre (Arte de Autor)