Fantasmas  do Império. Quando os negros eram figurantes

Fantasmas do Império. Quando os negros eram figurantes


Ariel de Bigault mergulhou na História do cinema português para um olhar sobre a forma como explorou e vem explorando, o passado colonial. O resultado é um documento pertinente e urgente, para ver hoje na Cinemateca.


Quando Portugal era império, os negros eram figurantes. Conclui Ângelo Torres diante do cinema-propaganda que Salazar encomendava a cineastas como António Lopes Ribeiro durante o Estado Novo; e o mesmo dirá, sem os ter ouvido, Margarida Cardoso sobre o lugar em que coloca a câmara – o dos “brancos” – em filmes como A Costa dos Murmúrios, em que numa adaptação do romance de Lídia Jorge volta a olhar para uma realidade que naquele tempo, os anos do domínio português sobre o território moçambicano, foi também a sua.

A partir de Lourenço Marques, e não em ficção de época, em documentário sobre o que era o quotidiano da hoje em dia Maputo, virá aqui ainda juntar-se o incontornável Catembe, de Faria de Almeida, que aproveitando a mão menos pesada da censura nas então colónias foi capaz de rodar e finalizar em 1965, a partir dessa cidade que era a sua, um filme em que retratava um dia de domingo. O domingo dos “brancos” – e depois o domingo dos “pretos”. O resultado foi um retrato chocante para o qual, depois de uma denúncia à polícia política, recebeu uma lista com mais de uma centena de cenas que deveriam ser cortadas. Tantas que acabou por desistir do filme – um filme de características raras, quase impossíveis, num regime assente na narrativa que Ariel de Bigault descreve como a “ficção” do império português. De resto quase não tratado nos anos que vieram depois, e lembra-o Ivo M. Ferreira, realizador de Cartas da Guerra sobre o que depois do 25 de Abril o país pareceu querer esquecer.

Sobre o Portugal colonial, o cinema português debruçou-se quase nada nos já 46 anos que nos separam de 1974. Mas sobre esse cinema, como sobre a sua inexistência, quis Ariel de Bigault olhar em Fantasmas do Império, que tem hoje a sua estreia absoluta na Cinemateca Portuguesa, integrado na programação do IndieLisboa, seguido de uma conversa com a realizadora. Conversa que não bastará fazer-se no final dessa sessão: para as questões que Fantasmas do Império nos coloca, talvez mais do que outros 46 anos sejam ainda precisos. “Há filmes que não pude incluir, mas não são muitos. Em televisão fizeram-se alguns documentários, mas filmes de ficção ou mesmo documentários de cinema não temos uma dúzia em 45 anos sobre a questão da colonização”, diz a realizadora em princípio de conversa com o i. “Posso até estar errada e vir alguém contradizer-me. Mas vai dizer que são 13, não são mais. Os filmes de propaganda do salazarismo também não são muitos”, recorda sobre o material que constitui o Arquivo Colonial da Cinemateca Portuguesa. “O Lopes Ribeiro foi quem fez mais, mas a maioria [das imagens] são atualidades, pequenos registos documentais”.

Por esses primeiros registos de imagem em movimento feitos por portugueses em África começa este filme que em mosaico vai avançando no tempo até ao período da guerra, antevendo, mas não entrando, no tema dos fantasmas do colonialismo que assombram a sociedade portuguesa ainda nos dias de hoje – seria um outro filme, que iria dar ao cinema do qual o trabalho de Pedro Costa com as comunidades cabo-verdianas nos subúrbios de Lisboa será o expoente máximo. No exercício de sobreposição de todas estas imagens, estes discursos cruzados, acompanham-nos José Manuel Costa, Fernando Matos Silva, Hugo Vieira da Silva, Orlando Sérgio, Ângelo Torres, Manuel Faria de Almeida, Joaquim Lopes Barbosa e Maria do Carmo Piçarra. No caso dos realizadores, olhando dos seus próprios filmes; no dos atores Orlando Sérgio, Ângelo Torres – atores negros – conduzindo em conversas esta narrativa entre fantasmas, interrogando os realizadores, interrogando-nos, portugueses, herdeiros da pesada herança do lugar do colono.

Dessas primeiras imagens, registos etnográficos quase, expedicionais, datadas ainda da década de 1920, partiremos numa linha mais ou menos cronológica que conduzirá à crescente agressividade do cinema propaganda do Estado Novo. Imagens a preto e branco ainda, imagens sobre “pretos” e sobre “brancos”. Sempre entre a propaganda e uma muito rara subversão – por vezes acidental, como acontece no filme de Lopes Ribeiro sobre a Guiné: “Vê-se que ficou fascinado, que se deixou fascinar, e a narração é completamente colonialista e horrível, mas as imagens…”. As imagens falam por si. José Manuel Costa, diretor da Cinemateca, lembrará como nem no cinema-propaganda o olhar pode ser a tempo inteiro o olhar colonizador. “Não é só o olhar da propaganda que está lá”, concorda a realizadora. “Surge o outro olhar. Mas isso também é um ponto de interrogação, também é algo que podemos questionar”.

E, por Fantasmas do Império seguirá a História desse cinema, uma História escassa, por obras incontornáveis como Chaimite (1953), de Jorge Brum do Canto, Acto dos Feitos da Guiné, filme de Fernando Matos Silva que estreado em 1980 percorre o colonialismo português, ou Não, ou a Vã Glória de Mandar (1990), de Manoel de Oliveira (1990), se chegará a um tempo que é já outro – o de uma nova geração em que cineastas como Miguel Gomes (Tabu), Ivo M. Ferreira (Cartas da Guerra) ou Hugo Vieira da Silva (Posto Avançado do Progresso) voltam a olhar para África (poder-se-ia juntar-lhes ainda outra, a de Filipa César e Carlos Conceição).

“O Fernando Matos Silva diz uma coisa que com muita pena minha não está no filme que é ‘afinal filmamos sempre da mesma maneira’”, recorda Bigault. “Há esta questão do olhar: onde é que se coloca a câmara? Qual é o olhar? O filme do Hugo Vieira da Silva veio quebrar com isso, penso eu. Radicalmente, pela forma como os personagens negros, africanos, congoleses vão tomando espaço”. Em Posto Avançado do Progresso (2016) a câmara já não está com colonos ou colonizados, ocupa o lugar do meio.

“No Tabu o Miguel Gomes também faz uma coisa interessante que é fazer aparecer pouco a pouco os africanos que estavam totalmente marginalizados em Moçambique naquela época. É um filme sobre os colonos, sim, sobre o paraíso, mas de vez em quando ele chama para o centro da imagem os africanos. Eram figurantes, sim, mas o filme é várias vezes invadido por eles”.