De olhos bem fechados


Os nossos governantes estão apenas preocupados em manter os olhos bem fechados em relação ao que se está a passar nos lares portugueses, não se preocupando minimamente em esclarecer os factos, apurar responsabilidades e garantir as adequadas condições de segurança.


Foi no passado dia 2 de Março que foram anunciados os dois primeiros casos de infecção por covid-19 em Portugal. Poucos dias depois, a 21 de Março, surgem as notícias das primeiras infecções nos lares, com a descoberta de dez utentes infectados na Casa de Saúde da Idanha, em Belas, e com a informação de que, num lar de Famalicão, oito funcionários tinham dado positivo para a covid-19, levando a que esse lar ficasse apenas com três funcionários para 31 utentes. Em declarações à comunicação social, a ministra de Saúde revelou no dia seguinte que esse lar não tinha elaborado qualquer plano de contingência para a covid-19, quando tinha o dever legal de o fazer.

Ao longo do mês de Maio soube-se que no Lar do Comércio, em Matosinhos, houve mais de 100 infecções e 24 mortes de utentes, tendo o lar tido de ser evacuado para ser desinfectado pelo Exército e os utentes transferidos para hospitais. No dia 9 de Junho, a directora-geral da Saúde anuncia que “a situação está controlada pelas autoridades de saúde, pela entidade gestora do lar”.

Em Junho passado é descoberto um surto de covid-19 no lar de Reguengos de Monsaraz, o qual provocou 162 casos de infecção, abrangendo no próprio lar 80 utentes e 26 profissionais, e tendo ainda provocado 56 infecções na comunidade. Nesse lar houve 18 vítimas mortais, havendo a lamentar a perda de 16 utentes, uma funcionária e uma pessoa da comunidade. O alarme social causado pelo surto foi de tal ordem que autarcas de municípios vizinhos em Espanha solicitaram o encerramento da fronteira. Apesar disso, a directora-geral da Saúde afirmou publicamente, no passado dia 16 de Julho, que “com os dados e a situação que havia, foram bem utilizados os recursos para tratar bem os doentes, isolar os seus contactos e conter o surto no lar e na comunidade”. Nessa data, já a Ordem dos Médicos tinha avisado que iria efectuar uma auditoria ao que se tinha passado no lar de Reguengos, devido às graves situações nele ocorridas. A Ordem dos Advogados anunciou igualmente ter encarregado a sua comissão de direitos humanos de averiguar o que se estava a passar nos lares portugueses.

Depois de a Ordem dos Médicos ter anunciado as conclusões da sua auditoria, com a revelação de falhas graves ocorridas no cuidado dos doentes em Reguengos de Monsaraz, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social deu, no passado fim-de-semana, uma entrevista ao Expresso. Esperar-se–ia que nessa entrevista revelasse as medidas que o seu ministério tinha tomado para averiguar o que se passara e garantir que tal não voltava a acontecer nos lares que estão sob a sua tutela. Afinal, segundo declarações da própria ministra da Saúde no passado dia 10 de Julho, tivemos 628 vítimas mortais nos lares portugueses, o que corresponde a quase 40% dos 1646 óbitos existentes à data. Esses óbitos ocorreram, assim, em instituições sob a tutela do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

Mas, pelo contrário, a ministra Ana Mendes Godinho informou que nem sequer tinha lido o relatório de auditoria da Ordem dos Médicos e que o seu objectivo não era apurar a responsabilidade dos surtos nos lares. Por esse motivo, informou ainda não ter conhecimento de qualquer inquérito feito pela Segurança Social aos lares, considerando mesmo que a dimensão dos surtos nos lares não era demasiado grande.

Tudo isto demonstra que os nossos governantes estão apenas preocupados em manter os olhos bem fechados em relação ao que se está a passar nos lares portugueses, não se preocupando minimamente em esclarecer os factos, apurar responsabilidades e garantir as adequadas condições de segurança. Ora, os utentes dos lares são consumidores, aos quais a Constituição reconhece, no seu art.o 60.o, o “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”. A responsabilidade por assegurar esses direitos não é apenas dos prestadores de serviços, mas recai igualmente sobre o próprio Estado – e, neste caso, os seus deveres são incrementados por se tratar de consumidores especialmente vulneráveis, em virtude da idade e das doenças a ela associadas. É bom, por isso, que os nossos governantes abram os olhos e assumam as suas responsabilidades neste domínio.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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