À beira-mar e ao sol deixamo-nos embalar pela rebentação das ondas, algo aparentemente simples mas que é um dos exemplos de turbulência, o movimento complexo, imprevisível e caótico dos fluidos, como a água ou o ar, e que continua a ser central em inúmeros cenários, da aerodinâmica dos automóveis à fusão nuclear controlada ou ao próprio interior do Sol.
As ondas do mar são inicialmente pequenas oscilações geradas à superfície da água pelo vento, longe da costa. Quando se aproximam das zonas menos profundas da costa, parte da ondas movem-se mais rapidamente do que outras partes, e as ondas “tropeçam” sobre si e rebentam. Leonardo da Vinci foi um dos primeiros a tentar visualizar e compreender o fenómeno e existem manuscritos seus com representações de vórtices na água [1]. Uma das mais reconhecidas e influentes obras de arte do Japão, Debaixo da Onda ao Largo de Kanagawa [2], de Katsushika Hokusai, capta não só toda a dinâmica complexa das ondas, mas também a emoção e o terror da rebentação de uma onda gigante, e A Noite Estrelada, de Vincent van Gogh [3], é outro exemplo da representação artística da turbulência e dos seus elementos centrais.
O físico Richard Feynmann descreveu a turbulência como “o mais importante problema por resolver da física clássica”. A Werner Heisenberg, um dos físicos fundadores da mecânica quântica, atribui-se uma história apócrifa segundo a qual, se pudesse, faria duas perguntas a Deus: “Porquê a relatividade? E porquê a turbulência?” Heisenberg tinha a certeza absoluta de que receberia resposta para a primeira questão, mas a segunda ficaria por responder. A equação de Navier-Stokes é a que descreve o comportamento dos fluidos e, portanto, da turbulência; a esta equação continua a estar associado um dos sete Prémios para os Problemas Matemáticos do Milénio [4], estabelecidos pelo Clay Mathematical Institute no início do séc. xxi.
A generalidade dos fluidos transita, sob determinadas condições – como, por exemplo, a velocidade a que se movem –, de um comportamento estável para um comportamento turbulento. É, assim, fácil perceber a importância de compreender, prever e dominar a turbulência em inúmeras aplicações, da aerodinâmica de automóveis ou aviões até aos aerossóis que transportam vírus no ar. O estudo da turbulência envolve algumas das maiores simulações computacionais do mundo, sendo objeto de intensa investigação, por exemplo, no Instituto de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico, onde são feitas simulações de escoamentos de fluidos para aplicações à indústria petrolífera.
É também a turbulência o maior desafio da fusão nuclear controlada. Os avanços dos últimos 50 anos destinaram-se a dominar a turbulência dos plasmas de fusão nuclear e conduziram ao reator internacional ITER [5], a maior experiência de fusão nuclear controlada. No final de julho, esta experiência iniciou uma fase decisiva de implementação que culminará no início da sua operação, dentro de poucos anos. Estaremos, então, apenas a um passo de um reator comercial capaz de produzir energia limpa e ilimitada.
Mas a turbulência e o rebentamento das ondas são também fonte de inspiração para novas ideias e conceitos. Um dos mais importantes físicos que estudaram a fusão nuclear, John Dawson, descobriu o conceito do surfatrão, uma forma de acelerar eletrões que se pensa estar presente em cenários astrofísicos, enquanto observava da sua casa em Pacific Palisades, Los Angeles, os surfistas na Will Rogers State Beach. Se, na praia, o leitor observar um surfista, irá reparar que ele nada primeiro em direção à praia para ter uma velocidade comparável à da onda e, assim, apanhá-la. Depois, quando se coloca em pé, acompanha sempre a onda em direção à praia, mas acelera e ganha velocidade enquanto se move ao longo da frente da onda. John Dawson e Tom Katsouleas [6], dois cientistas da Universidade da Califórnia Los Angeles, imaginaram como poderiam fazer o mesmo com eletrões e publicaram até um artigo com o seu eletrão surfista, provavelmente o único em que a metáfora foi explicitamente ilustrada [7]. A mais séria e convencional Physical Review Letters obrigou os autores a substituir o eletrão surfista pela menos entusiasmante esfera com sinal negativo!
Nos últimos anos, muitos avanços têm sido possíveis no estudo da turbulência, impulsionados por simulações numéricas com elevado detalhe, combinados com experiências e observações cada vez mais precisas como, por exemplo, a sonda Parker Solar Probe, da NASA. Esta sonda irá “tocar” o Sol e começou recentemente a estudar a turbulência na coroa exterior do Sol, responsável por tempestades que ejetam material do Sol que pode destruir os satélites. Felizmente, os campos magnéticos que protegem a Terra defendem-nos destas tempestades solares e permitem-nos aproveitar o sol na praia e a turbulência benigna das ondas do mar numa tarde de verão.
Professor catedrático do Departamento de Física
Presidente do conselho científico
Instituto Superior Técnico
web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os
[1] https://www.rct.uk/collection/912660/studies-of-water
[2] https://www.metmuseum.org/art/collection/search/45434
[3] https://www.moma.org/collection/works/79802
[4] https://www.claymath.org/millennium-problems/millennium-prize-problems
[5] https://www.iter.org/
[6] Como nota de curiosidade, Tom Katsouleas é actualmente presidente da Universidade do Connecticut, foi nadador-salvador na praia de Santa Mónica, em Los Angeles, e consultor do episódio-piloto da série Baywatch/Marés Vivas.
[7] https://www.semanticscholar.org/paper/A-Plasma-Wave-Accelerator-Surfatron-I-Katsouleas-Dawson/7c10cb25f9c00508a22981e5d466c9509e7f11d6