Visão estratégica para a justiça


Como demonstrou a recente polémica sobre as férias judiciais, há muita gente que opina sobre a justiça sem nada saber sobre a mesma.


Portugal tem o estranho hábito de recorrer periodicamente a sábios, nacionais ou estrangeiros, que apresentam num ápice medidas para salvar o país mas que, normalmente, não passam de generalidades. Foi assim que, há 25 anos, o Governo de Cavaco Silva pediu a Michael Porter que apresentasse um estudo sobre a competitividade da economia portuguesa, na esperança de dar o famoso salto tecnológico, e, para espanto geral, o mesmo recomendou que o país se concentrasse antes nos seus sectores tradicionais, como o calçado e o têxtil. Agora foi pedido ao eng.o António Costa Silva que elaborasse mais uma agenda para a década, tendo o mesmo produzido um documento de 120 páginas intitulado “Visão estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030 (Proposta)”. O país dispõe assim, agora, de uma visão estratégica para um plano, ou melhor, de uma proposta de visão estratégica para um plano.

Interessa-nos especialmente falar do sector da justiça, que é precisamente aquele com o que o autor encerra o seu plano, proposta ou visão estratégica, que lhe ocupa apenas duas páginas, a 119 e a 120. Nestas páginas, o autor reconhece que “o sistema da Justiça Económica e Fiscal em Portugal é lento”, do que ninguém duvida, que “as respostas aos processos são demoradas”, o que é óbvio, “que a gestão dos processos de justiça não é a mais adequada”, sem dizer porquê, e que “a falta de meios e recursos nos tribunais é um entrave”, sem, no entanto, propor mais meios. Mas ficamos convencidos com a sua afirmação de que “Portugal precisa de uma justiça, em particular a justiça económica e fiscal, orientada para o século XXI”. Afinal corríamos o risco de, se os atrasos continuassem, a mesma se orientar antes para o século XXII.

Mas quais são as medidas propostas pelo eng.o António Costa Silva na sua visão estratégica para a justiça em Portugal? A primeira medida é a de “fomentar a utilização dos meios de resolução alternativa de litígios em Portugal”, como se em Portugal os mesmos não fossem já abundantemente utilizados. A segunda medida é a de “estimular os operadores judiciais a utilizar os meios alternativos de resolução de litígios, tendo em conta que são mais rápidos e menos onerosos”. Ou esta medida é idêntica à anterior ou não conseguimos compreendê-la. A terceira medida é a de “fomentar a adoção de recursos extrajudiciais de troca de informação, que são sempre facultativos, têm um formalismo reduzido, mas que podem muitas vezes aproximar as partes, criar condições para um acordo e assim pouparem a energia dos tribunais”. A ideia de que as partes num litígio fornecerão facultativamente informações entre si e com isso evitarão a ida a tribunal, poupando-lhes assim energia, é perfeitamente platónica e insusceptível de resolver qualquer litígio. A quarta medida é “estimular a aplicação pelos juízes das técnicas de conciliação judicial”, como se os juízes não aplicassem já persistentemente essas técnicas em todos os julgamentos e audiências preliminares que realizam. A quinta medida é a de “estimular o potencial dos protocolos pré-judiciais e dos meios de arbitragem para a resolução de conflitos”, medida que também temos dificuldade em distinguir das anteriores. A sexta medida é a de “melhorar toda a gestão dos processos judiciais, tornando-a mais eficaz e produtiva”. Falta só o pequeno detalhe de explicar como se tenciona fazê-lo. A sétima medida é a de “simplificar as etapas dos processos judiciais, facilitando a sua tramitação electrónica”. Todos os processos judiciais cíveis já são tramitados electronicamente, com excepção das audiências preliminares e de julgamento, tendo sido um fracasso, no período de pandemia, a sua realização por via electrónica. Finalmente, a última medida é a de “remover dos tribunais, dentro do possível, processos que ‘parasitam’ o sistema, como os relacionados com as insolvências, litígios específicos e fiscalidade”. Não sabemos a que outros “litígios específicos” se refere o eng.o António Costa Silva. Quanto aos litígios fiscais, já podem ser dirimidos em tribunal arbitral e frequentemente o são. Quanto às insolvências, a sua saída dos tribunais seria a garantia de que, na crise, os credores não conseguiriam recuperar qualquer montante dos seus créditos, o que deve ser uma excelente ideia para a recuperação do país.

Como demonstrou a recente polémica sobre as férias judiciais, há muita gente que opina sobre a justiça sem nada saber sobre a mesma. Já nos parece, porém, problemático que este tipo de propostas para a justiça surjam num plano de reformas elaborado a pedido do Governo que é, afinal, apenas um conjunto de generalidades. Visão estratégica para a justiça, sinceramente, não a encontrei nesse plano.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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