A não fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis


É absolutamente essencial a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, especialmente nestes tempos da pandemia de covid-19, em que estamos a assistir a restrições aos direitos fundamentais como não há memória em Portugal.


Uma das mais importantes funções do Presidente da República, prevista no art.o 278.o, n.o 1, da Constituição, é a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Através dessa função, o Presidente submete os diplomas que lhe suscitem dúvidas de constitucionalidade à apreciação do Tribunal Constitucional que, caso se pronuncie pela inconstitucionalidade, impede que os mesmos entrem em vigor, assim se evitando lesões graves dos direitos fundamentais dos cidadãos que seriam causadas pelo diploma inconstitucional.

Foi precisamente o que não se passou com a lei 64/2018, de 29 de Outubro, relativa ao direito de preferência dos arrendatários. Essa lei surgiu porque o Parlamento decidiu, ao arrepio de todas as regras constitucionais, intervir num negócio entre entidades privadas, que naturalmente deve ser regido pela lei vigente ao tempo da sua celebração. Precisamente por esse motivo, a lei deveria ter sido logo sujeita à fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, desde a sua primeira versão.

O Presidente da República optou, no entanto, em 1 de Agosto de 2018, por um estranho veto político, solicitando à Assembleia da República “clarificação” sobre duas questões: “a) a falta de indicação de critérios de avaliação para o exercício do direito de preferência, que existia em anterior versão do diploma; b) O facto de, tal como se encontra redigida, a preferência poder ser invocada não apenas pelos inquilinos para defenderem o seu direito à habitação, mas também por inquilinos com atividades de outra natureza, nomeadamente empresarial”. As questões colocadas são estranhíssimas como fundamento de um veto político, cuja função é a de o Presidente manifestar oposição política ao conteúdo ou à oportunidade de um diploma. Ora, na primeira questão, o Presidente da República manifesta preferência por uma versão anterior do diploma, o que constitui intervenção no processo legislativo, e na segunda questão pretende limitar o alargamento do direito de preferência aos inquilinos habitacionais, quando há décadas que a preferência do arrendatário tem um regime comum, tendo começado precisamente pelos inquilinos não habitacionais, só depois se estendendo aos inquilinos habitacionais.

Tendo a Assembleia alterado o diploma a pedido do Presidente, este acabou, em Outubro de 2018, por promulgá-lo “atendendo às alterações introduzidas pela Assembleia da República, tomando plenamente em conta as clarificações solicitadas na mensagem de 1 de Agosto de 2018 e melhorando e reequilibrando o diploma”. Só que o diploma continuava a ser profundamente desequilibrado, constituindo mesmo uma aberração jurídica, estabelecendo que, se um prédio estivesse indiviso, o inquilino poderia preferir apenas uma parte dele, ficando comproprietário desse prédio com uma quota ideal, cujo valor nem sequer poderia ser determinado, uma vez que só as fracções autónomas dos prédios em propriedade horizontal têm permilagem atribuída. O resultado desta lei 64/2018, de 29 de Outubro, foi, assim, o impedimento à alienação dos imóveis, já que nenhum comprador de um prédio o compra para ficar em compropriedade com um desconhecido. A lei favoreceu, além disso, a especulação imobiliária dos inquilinos, que apareciam a exigir quantias para não exercer a preferência ou a reclamar valores elevadíssimos para venda posterior da quota em compropriedade. Por esse motivo, o Tribunal Constitucional considerou, através do acórdão 299/2020, de 16 de Junho, inconstitucional essa solução. Mas, durante o tempo em que este regime esteve em vigor, muitos proprietários foram brutalmente lesados por este diploma iníquo e absurdo.

De tudo isto resulta evidente que é absolutamente essencial a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, especialmente nestes tempos da pandemia de covid-19, em que estamos a assistir a restrições aos direitos fundamentais como não há memória em Portugal, através de sucessivas leis de emergência, muitos delas de duvidosa constitucionalidade. Se temos um Tribunal Constitucional é precisamente para o mesmo ser ouvido sempre que um diploma suscita dúvidas de constitucionalidade. A tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos assim o exige.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de LisboaEscreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

 

A não fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis


É absolutamente essencial a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, especialmente nestes tempos da pandemia de covid-19, em que estamos a assistir a restrições aos direitos fundamentais como não há memória em Portugal.


Uma das mais importantes funções do Presidente da República, prevista no art.o 278.o, n.o 1, da Constituição, é a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis. Através dessa função, o Presidente submete os diplomas que lhe suscitem dúvidas de constitucionalidade à apreciação do Tribunal Constitucional que, caso se pronuncie pela inconstitucionalidade, impede que os mesmos entrem em vigor, assim se evitando lesões graves dos direitos fundamentais dos cidadãos que seriam causadas pelo diploma inconstitucional.

Foi precisamente o que não se passou com a lei 64/2018, de 29 de Outubro, relativa ao direito de preferência dos arrendatários. Essa lei surgiu porque o Parlamento decidiu, ao arrepio de todas as regras constitucionais, intervir num negócio entre entidades privadas, que naturalmente deve ser regido pela lei vigente ao tempo da sua celebração. Precisamente por esse motivo, a lei deveria ter sido logo sujeita à fiscalização preventiva da sua constitucionalidade, desde a sua primeira versão.

O Presidente da República optou, no entanto, em 1 de Agosto de 2018, por um estranho veto político, solicitando à Assembleia da República “clarificação” sobre duas questões: “a) a falta de indicação de critérios de avaliação para o exercício do direito de preferência, que existia em anterior versão do diploma; b) O facto de, tal como se encontra redigida, a preferência poder ser invocada não apenas pelos inquilinos para defenderem o seu direito à habitação, mas também por inquilinos com atividades de outra natureza, nomeadamente empresarial”. As questões colocadas são estranhíssimas como fundamento de um veto político, cuja função é a de o Presidente manifestar oposição política ao conteúdo ou à oportunidade de um diploma. Ora, na primeira questão, o Presidente da República manifesta preferência por uma versão anterior do diploma, o que constitui intervenção no processo legislativo, e na segunda questão pretende limitar o alargamento do direito de preferência aos inquilinos habitacionais, quando há décadas que a preferência do arrendatário tem um regime comum, tendo começado precisamente pelos inquilinos não habitacionais, só depois se estendendo aos inquilinos habitacionais.

Tendo a Assembleia alterado o diploma a pedido do Presidente, este acabou, em Outubro de 2018, por promulgá-lo “atendendo às alterações introduzidas pela Assembleia da República, tomando plenamente em conta as clarificações solicitadas na mensagem de 1 de Agosto de 2018 e melhorando e reequilibrando o diploma”. Só que o diploma continuava a ser profundamente desequilibrado, constituindo mesmo uma aberração jurídica, estabelecendo que, se um prédio estivesse indiviso, o inquilino poderia preferir apenas uma parte dele, ficando comproprietário desse prédio com uma quota ideal, cujo valor nem sequer poderia ser determinado, uma vez que só as fracções autónomas dos prédios em propriedade horizontal têm permilagem atribuída. O resultado desta lei 64/2018, de 29 de Outubro, foi, assim, o impedimento à alienação dos imóveis, já que nenhum comprador de um prédio o compra para ficar em compropriedade com um desconhecido. A lei favoreceu, além disso, a especulação imobiliária dos inquilinos, que apareciam a exigir quantias para não exercer a preferência ou a reclamar valores elevadíssimos para venda posterior da quota em compropriedade. Por esse motivo, o Tribunal Constitucional considerou, através do acórdão 299/2020, de 16 de Junho, inconstitucional essa solução. Mas, durante o tempo em que este regime esteve em vigor, muitos proprietários foram brutalmente lesados por este diploma iníquo e absurdo.

De tudo isto resulta evidente que é absolutamente essencial a fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis, especialmente nestes tempos da pandemia de covid-19, em que estamos a assistir a restrições aos direitos fundamentais como não há memória em Portugal, através de sucessivas leis de emergência, muitos delas de duvidosa constitucionalidade. Se temos um Tribunal Constitucional é precisamente para o mesmo ser ouvido sempre que um diploma suscita dúvidas de constitucionalidade. A tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos assim o exige.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de LisboaEscreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990