Teoria geral do escaldão, a propósito da gestãoda pandemia e de outras atualidades


Depois de uma fase em que o protetor solar do confinamento achatou a curva dos contágios, o desconfinamento trouxe uma realidade que contradiz a conversa do milagre português.


O sol tem tanto de fundamental para os seres vivos como de perigoso. Em excesso, queima a pele e potencia os riscos para a saúde. Da mesma forma que quem anda à chuva tende a molhar-se, quem se expõe excessivamente ao sol corre o risco de ficar à mercê das consequências do sol e dos raios ultravioleta (UV). É certo que a gravidade das queimaduras pode ser de primeiro grau (mais ligeira), de segundo grau (com formação de bolhas e dor intensa) e de terceiro grau (mais grave, com destruição de tecidos), mas quem anda ao sol queima-se. O problema é que as agressões solares são cumulativas, ficam gravadas na memória da pele, viabilizando o envelhecimento precoce e o aparecimento de doenças como o cancro cutâneo, depois de vários anos ou mesmo décadas.

A gestão da pandemia está à beira de se traduzir num escaldão a partir da relevância real e percecionada de fenómenos concretos do território que desmentem a narrativa construída em divergência com a ciência e com o senso. Quis-se apanhar demasiado sol – tem tudo para dar escaldão, por enquanto com queimadura de primeiro grau, mas com risco de evolução negativa.

Depois de uma fase em que o protetor solar do confinamento achatou a curva dos contágios, enquanto se reforçava a capacidade instalada do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente com ventiladores e outros materiais essenciais para a proteção dos profissionais, para os cuidados de saúde e para a realização dos testes de despistagem, o desconfinamento trouxe uma realidade que contradiz a conversa do milagre português.

Foi a circunstância do confinamento que nos acautelou o impacto da primeira vaga, são as circunstâncias que determinam as dificuldades atuais.

A circunstância da disciplina geral em relação às regras, e não apenas dos jovens, não ser uma realidade tão sólida quanto foi elogiada em diversas ocasiões. Salvo melhor opinião e do ponto de vista comunicacional, a mensagem nunca deveria ter sido focada apenas no elogio da alegada responsabilidade cívica, sem ampliar a pressão em relação aos incumprimentos e aos desvios que existiram sempre e até foram validados pelas autoridades. É certo que o direito à manifestação tem uma proteção constitucional reforçada, mas nada impedia que os mais altos titulares de cargos da República o tivessem desaconselhado tendo em conta o contexto, o sinal de contradição e a perceção errada que transmitiam à população em geral. Mas não, preferiu-se outro caminho. É não ter a noção de que, infelizmente, as questões reconduzem-se amiúde a “o que é que eu ganho?” e a “o que é que eu posso perder?”. Nem se sublinharam suficientemente os ganhos individuais e comunitários, nem se sustentaram as adequadas sanções por incumprimento. O resultado está à vista: os fenómenos de sempre, de ajuntamentos típicos de verão e das vivências das comunidades, num contexto de contágio – logo, com mais casos.

Mas também a circunstância das realidades concretas, de quem parece não conhecer o território que administra, do apelo ao transporte público sem oferta adequada ou do apelo à integração sem promoção de habitação, de convivência social ordeira ou de acompanhamento da desestruturação familiar existente.

Em diversos aspetos houve uma estratégia e uma narrativa que não tiveram e não têm adesão à realidade e que, a par das hesitações, contradições e imprecisões, ajudam a gerar desnorte, desconforto e impunidade. A ganância em querer demonstrar o regresso ao “novo normal” pós-confinamento é similar à ânsia de obter um bronzeado no primeiro dia de praia que, com frequência, acaba em escaldão. É o que estamos a ter com as medidas em alguns pontos de Lisboa que, realisticamente, e tendo em conta a mobilidade existente, poderiam mais alargadas, ou com as consequências de epifenómenos de disparate que terão repercussões graves para as pessoas, para as regiões e para o país. E pensar que, na fase inicial, a Presidência e o Governo não permitiram que, por exemplo, os Açores, como região autónoma e arquipélago, tivessem adotado medidas mais restritivas de acesso ao território insular como medida preventiva e de salvaguarda da saúde pública.

É uma evidência que o sistema remendou uma resposta ao enorme desafio de saúde pública, com dimensões muito positivas, mas com diversas debilidades e falhas que nunca foram assumidas como parte do processo evolutivo de preparação da resposta de um SNS com passivos estruturais de anos e dos ajustamentos perante uma situação de grande complexidade. Preferiram-se tantas vezes as proclamações e narrativas à margem da realidade e longe da verdade.

É hoje claro que houve e há divergências entre o discurso político e a realidade que geram desconfiança e abrem a porta a oportunismos políticos que em nada contribuirão para mitigar a situação. Há respostas estruturais às causas que impossibilitam o distanciamento social, o respeito pelas regras e a manutenção de mínimos de higienização que não se resolvem da noite para o dia. Há passivos acumulados que não foram opção política de intervenção e não o serão após a pandemia, porque o foco eleitoral não está aí, como deixou de estar em boa parte na floresta e no interior.

Com as sementes lançadas, não será fácil inverter a dinâmica, com causas estruturais e não de circunstância, sem que se produzam impactos relevantes para o país. Assumir as debilidades, ajustar a capacidade de resposta em tempo útil e falar verdade poderia ajudar, mas a prática política de anos e a gestão do processo estão eivadas de inconsistências, de fanfarronice política e de um habilidoso registo de intervenção política não escrutinada.

Sem terem usado o fator de proteção solar perante as opções de exposição ao sol escolhidas, com as queimaduras de primeiro grau à vista, importa mudar o registo, reforçar a eficácia da ação e modelar as regras sociais, com a adequada cobertura jurídico-constitucional. Será pedir demais, perante a realidade e tantas incertezas?

 

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