Uma filosofia do coronavírus: recorrer ao pensamento não linear e sistémico; priorizar a aposta no risco colectivo, criando uma inteligência colectiva e sistemas imunes a homens (que se crêem) providenciais; reconhecer uma escala de ignorância inelutável presente no humano e, bem assim, a sua debilidade e o carácter de aposta, sem razões avassaladoras, de decisões políticas em um novo contexto; compreender que, em uma época com traços inéditos, a experiência pretérita terá que dar lugar ao conhecimento a partir do futuro (prevenção, precaução, etc.); promover uma maior integração política da humanidade ou revisão da governança global; insistir no compromisso entre as dimensões de proximidade e distância nos nossos quotidianos para evitar desequilíbrios insanos; perceber, na revalorização do estudo, do conhecimento, dos factos, da verdade, da cooperação científica internacional, um importante constrangimento aos populismos; entender a natura como comunidade de afectação e não uma externalidade a manipular (a bel-prazer).
1. O modo habitual/dominante como tendemos a pensar os sucessos quotidianos é linear: somamos quantidades para adivinhar o impacto combinado dos elementos. Lidamos com acontecimentos previsíveis que correspondem às nossas expectativas e infra-estruturas, de modo que conseguimos antecipar-nos às (piores) consequências.
As dinâmicas não lineares são aquelas em que se geram efeitos cascata, uma coisa não se soma simplesmente a outra, sendo que “pequenas mudanças acabam por converter-se em transformações massivas”; encontramo-nos, hoje por hoje, face a sistemas complexos, com riscos encadeados, em que várias coisas podem correr mal em simultâneo, implicando-nos, nessa medida, na urgência de pensar “em termos de complexidade sistémica e [de] transformar as nossas instituições” para o efeito.
Uma das lições que Daniel Innerarity, no seu livro sobre a crise do “coronavírus”, “Pandemocracia” (Galaxia Gutenberg, 2020), propõe que fixemos, no estádio civilizacional em que estamos, é a de que “conhecer é cada vez menos saber uma lista de acontecimentos gloriosos do passado, mas tem que ver com aprendizagem, quer dizer, com o conhecimento do futuro. Em civilizações dinâmicas e voláteis, a sabedoria devida à experiência outro remédio não tem senão o de ser progressivamente substituída por operações que poderão caracterizar-se como aprender do futuro: previsão, prevenção, antecipação, precaução…”(p.30).
Sem prejuízo do devido atentar nas várias etapas que o humano conheceu até aos nossos dias – e Innerarity irá pontuar, nesta obra, alguns dos adquiridos de crises pretéritas, mais recentes ou mais distanciadas no tempo -, sem, portanto, fazer tábua rasa do passado, com este assertivo incisivo o filósofo devolve-nos ao inóspito de uma condição incerta, complexa, sobretudo diversa, com seus traços de ineditismo, que é a da nossa época, incluindo, já, nesta, quer a crise climática, quer a instabilidade da “financeirização da economia”.
Mudanças repentinas, descontínuas, não antecipáveis – não só desconhecemos o quando como o quê, ou seja, a natureza dessas irrupções – reclamam “uma nova maneira de pensar a realidade” (p.34). As hesitações com que principiámos por responder, institucionalmente, à crise do SARS-CoV2 – no que concerne a alerta, gestão, atenção sanitária, logística, comunicação…- seria, no entender do Diretor do Instituto de Governança Democrática, um exemplo do nosso pensamento dominante, conquanto, e inversamente, a expressão “aplanar a curva”, bem como os respectivos confinamento e distância social seriam manifestações de um pensamento sistémico (na medida em que, com aqueles, mais do que o risco individual, se visou impedir um contágio massivo que colapsasse os hospitais).
2. Se uma primeira distinção, operada em Pandemocracia, por Daniel Innerarity, foi a que separa um pensamento linear de um, outro, não linear (e com futuro), um distinguo adicional que o Catedrático de Filosofia, Professor no Instituto Europeu de Florença, enceta remete-nos, em rigor, para uma das pedras de toque do seu pensamento, desenvolvido ao longo de diferentes obras que assina: a primazia à construção de uma “inteligência colectiva”, de sistemas e instituições inteligentes, que, em um primeiro momento, nos envolvam em um diagnóstico que supere uma redutora culpabilização de – e uma excessiva moralização sobre – determinados agentes e, por essa via, nos impeça de olhar, com outra amplitude, para as fundações/raízes dos problemas – sem bons diagnósticos, dificilmente conseguiremos soluções à altura das carências por que passamos – e, em uma segunda consideração, que no apontar – tantas vezes mútuo, entre vieses ideológicos diferenciados, mesmo que com razões – de culpas se gere uma paralisação da deliberação e decisão políticas que urgem em cada momento, ou, em definitivo, obstinação na construção de uma robusta “inteligência colectiva e sistemas inteligentemente perfilados” com o fito de assegurar a perenidade de uma comunidade, não dependente, esta – se a prossecução de tal desiderato, enunciado pelo ensaísta, for bem sucedida -, de homens providenciais, nem passível de ser destruída por aspirantes a tiranos.
A quando da crise de 2008, a direita apontou o dedo a quem, supostamente, teria vivido “acima das suas possibilidades” e a esquerda “aos que nos enganaram”. Com isto, assinala Innerarity, ambos os clamores “perdiam de vista os motivos estruturais da crise”, a saber, i) débil governança global, ii) política creditícia irracional ou iii) falta de medidas financeiras anti-cíclicas. Assim, “o problema não era tanto o comportamento dos elementos do sistema (consumidores ou entidades financeiras) quanto a sua estúpida agregação” (p.41).
Agora mesmo, continuamos a pensar em termos de risco individual, quando se trata de risco colectivo; pensamos causalmente em vez de modo probabilístico, de modo linear quando devíamos recorrer a um pensamento não linear (p.42). Assim, a actual crise não é o fim do mundo, mas o fim de um mundo: o “das certezas, de seres invulneráveis e o da auto-suficiência”, um mundo “calculável, previsível e obediente às nossas ordens”, substituído, então, pela entrada em um “espaço desconhecido, comum e frágil”, no qual “temos de aceitar a nossa irredutível ignorância”, em que constatamos, finalmente, a nossa “inserção material e corporal em um entorno natural que não é uma mera externalidade ou um recurso e nos introduz em comunidades de afectação para as quais temos que desenhar novas formas de protecção” (p.42) e em que compreendemos que múltiplas decisões políticas assumirão (quase) o carácter de uma aposta, tomadas, inevitavelmente, sem razões avassaladoras a sustentá-las, mau grado a consulta, e o consequente parecer, dos peritos.
Note-se, em este ponto, que a recusa da abordagem moralista, por banda de Innerarity, reenvia-nos às diferentes antinomias europeias, seja nos epítetos de “perdulários” com que o Norte terá pretendido etiquetar o Sul, seja no esgrimir do “egoísmo” como característica do Norte, nas vozes do Sul: preferível será a cabal demonstração de uma correcta interpretação do interesse nacional de cada um dos países à luz da necessidade da preservação do projecto europeu – isto é, destinos de exportações e mercados de importações que convém não descurar segundo o interesse nacional dos diferentes países (mas explicado, desde logo, de per se) e, consequentemente, agir no sentido de impedir que desapareçam no interior do espaço euro(peu) – do que o brandir de acusações dos dois lados da barricada. Projecto, este, o europeu que, a cada crise, em todo o caso, conhece avanços, ainda que, da história, as lições que se tirem apenas lentamente sejam acomodadas na legislação e integração política (europeias), e não com a profundidade que seria exigível.
3. Se, como ironiza Innerarity, para se chamarem os filósofos (para se pronunciarem sobre esta crise), é porque os demais experts fracassaram na tentativa de a tornar inteligível e a situação é mesmo grave, estes, os que se dedicam à filosofia, por sua vez, não fogem a um contraditório interpares que têm feito acompanhar de uma certa mordacidade. Innerarity aponta o dedo à recorrência com que Slavoj Zizek vê, em cada crise, o sinal do regresso do comunismo, questionando, ab initio, que a uma queda, como a que vivemos, se siga, necessariamente, a emancipação e, mais do que isso, que os mais frágeis saiam daqui fortalecidos (julgando, aliás, tratar-se do inverso, como mais provável dos cenários, como se vem desenhando: “a ideia de que do sacrifício proceda a emancipação é tão incrível como assegurar que dessa comoção vão sair beneficiados os mais necessitados (…) das ruínas não surge necessariamente a nova ordem e a mudança pode ser para pior”, p.81); dirige-se a Chul Han, e à pretensa atractividade, pela eficácia, que a muitos, a Ocidente, viria, num futuro relativamente próximo, a suscitar o modelo chinês, considerando, à vez, que as democracias não têm por que não serem eficazes e, não menos relevante, a ditadura chinesa não provou eficiência alguma, seja na informação para o exterior – desde o momento em que em Pequim se soube do novo vírus até à sinalização ao exterior demorou-se demasiado tempo com custos de vidas e o filósofo basco não deixa de subscrever a necessidade de uma investigação aturada às origens da pandemia, na China, e actuação das suas autoridades, por instituições transnacionais -, seja, porventura mais significativamente, para o interior, na medida em que o modelo chinês impõe aos seus quadros o envio de notícias radiantes e magníficas à sua estrutura central – sendo, pois, por consequência, imposta imediata censura, silenciamento, condenação ao médico chinês que primeiro detectou o novo vírus (“quando falo de livre circulação da informação, não me estou a referir à mera circulação de dados (…) mas à informação de qualidade que permite conhecer a situação real de um país e tomar decisões acertadas, essa informação que só se gera ali onde – como ocorre nas democracias consolidadas – se respeitam os valores fundamentais: a tolerância face à crítica e a confiança. Um regime pode dispor de toda a informação que lhe proporcionam os big data e ter uma má informação (…) a eficiência totalitária, se é que existe, nunca tem como objectivo a protecção dos cidadãos, mas antes a sobrevivência do regime”, p.79). Ao que acresce uma inaudita violência no confinamento imposto ao seu povo, pelo regime chinês e sua nomenklatura, como imagens de portas de habitações seladas pelas autoridades, mesmo com gritos de socorro no seu interior, documentariam.
Já relativamente a Giorgio Agamben, “deve ser muito difícil sobreviver ao êxito de uma metáfora e resistir à tentação de a aplicar a qualquer situação”, isto é, a sua conhecida ideia de que o “estado de excepção” se convertera na “situação normal da democracia”, enquanto evidenciada pela actual crise, seria uma proposição demagógica: não apenas porque há contradição em considerar o “estado de excepção” como a situação típica, novo normal, da democracia dado que, se aquele agora foi decretado, é porque antes não se vivia em tal estado (de excepção), mas ainda, e fundamentalmente – e aqui, Innerarity aponta também à escassamente documentada ideia de Sloterdijk de estarmos a caminho do “submetimento a uma ditadura médico-colectivista” -, porque “as emergências decretadas pelos governos europeus estão condicionadas a quanto se refira à luta contra o Covid-19, limitadas no tempo e sem criarem novos delitos, três condições das que carece o excepcionalismo decretado pelo governo da Hungria [esse, sim, de matriz iliberal e autocrática]. Comparo, logo existo”(p.73).
Quem não aprenderá da crise é quem já sabe as respostas – antes, mesmo, de procurar formular perguntas (acerca desta), resume Innerarity.
4. Para o nosso equilíbrio existencial, a devida articulação (quotidiana) entre as dimensões de proximidade e distância revela-se decisiva. De repente, deixámos de ter disponível o âmbito da distância. Se nos seus sofisticados e espirituosos aforismos, Karl Kraus sentenciava que “a vida familiar é uma intromissão na vida privada” (Aforismos, VS, 2018, p.60), Daniel Innerarity considera que é muito bonito afirmar-se que é na intimidade ou na solidão que nos confrontamos connosco próprios, mas que, em realidade, descobrimos quem somos, não necessariamente num bosque longe do mundo, mas em dimensões como o trabalho, no ócio, viajando. Não estávamos preparados para o exclusivo da intimidade e a questão é saber se conseguiremos sobreviver a tanta proximidade (p.88). Os dados imediatos de violência doméstica que chegaram da China corroborariam este cepticismo, sobretudo quando acompanhados de relatos semelhantes em diferentes países europeus, ou, mais recentemente ainda, se observados à luz do disparar do número de divórcios, que os periódicos portugueses relataram, como situação que nos é mais próxima.
5. Ao invés do que muitos crêem, anota o Professor de Filosofia Política, os populistas não saem reforçados, antes minguados, desta crise porque x) ela provou a importância do saber pericial, ou seja, do estudo aturado, dos factos, da própria noção de verdade – elementos que não atraem demasiado os “líderes fortes” que vão pululando pelo mundo; xx) realçou a determinante das instituições, em lugar do toque de magia desta ou daquela personalidade, mais ou menos – tida pela própria e por seus apoiantes como – carismática; xxx) sublinha como decisiva a cooperação internacional, a partilha das melhores práticas, a informação sobre o ponto em que se situa o conhecimento mais avançado em termos científicos (“a verdadeira saída é a cooperação na ciência, na política, na economia (…) os riscos compartilhados são o principal factor de unidade de um mundo em que todos estamos igualmente ameaçados”, p.53), os melhores modos de luta contra a pandemia praticados por, e em, diversos países…ao invés do confinamento nacional(ista).
A história da globalização sempre conheceu momentos de expansão e de contracção e, se se pensa, ilustrando, que o recuo nas viagens realizadas por muitos milhões de cidadãos à escala planetária melhorará o clima (“a redução do tráfego aéreo está a diminuir a quantidade de dados atmosféricos necessários para realizar previsões que também são importantes para se conhecer a extensão da pandemia”, p.59), não apenas se ignora que o relançamento da economia o vai de novo questionar – as novas centrais a carvão aprovadas pela China aí estão para o elucidar -, como, para aquele efeito (de aquecimento económico), ao serem mobilizados muitos milhões, algum plafond poderá ser retirado à luta contra as alterações climáticas (e Innerarity não estabelece, neste contexto, como poderia tê-lo feito, a possibilidade de um relançamento económico verde). Apesar de a crise climática ser mais grave do que a do coronavírus, no entender do filósofo – que, desta sorte, não integra, ainda, a crise da covid19 no interior de uma crise ecológica que seria, em medida impressiva, a expressão das alterações climáticas, passo que alguns autores logo foram tentados a dar -, a mudança de comportamentos rápida induzida no segundo caso, que não no primeiro, explica-se por esta última sugerir ser geral e longínqua enquanto a atual pandemia resultar próxima e imediata. Eis um espelho das nossas sociedades: funcionam à base de incentivos e pressões, atende ao urgente, ao que “faz ruído e é mais visível, não tomando devida nota das mudanças latentes e silenciosas, mesmo que mais decisivas do que os perigos imediatos” (p.118).
O recuo nacionalista não se observa, ademais, na Europa, se atentarmos a que, também durante este período pandémico, o que se exigiu/vem exigindo não é menos, mas mais Europa (e Innerarity cita a proposta de Miguel Poiares Maduro, seu colega no Instituto Europeu de Florença, quanto ao modo financiamento da UE no combate à pandemia).
6.Quando a peste se estendia pela Europa em 1348, as autoridades de Veneza fecharam o porto da cidade aos barcos procedentes de áreas infectadas, forçando os viajantes a 30 dias de isolamento que, logo, se converteriam em 40 (p.76). Eis a origem histórica da expressão quarentena. No nosso actual lidar com esta, e com o nosso confinamento, se há, implícita e objectivamente, um reconhecimento da nossa debilidade, é possível detectar, em simultâneo, a potencial reivindicação humana de tudo controlar(mos), incluindo conseguir parar o mundo – no que nos enganaríamos (p.106).
Pandemocracia, titulo mais recente do filósofo Daniel Innerarity, recolhe o seu título da convicção do seu autor de que o actual momento reclama uma maior integração política da humanidade, o fortalecimento das instituições transnacionais ou da governança global, dado que os actuais modos de governar são insuficientes. A crise do coronavírus é pandemocrática como todos os riscos globais, sendo que o conjunto dos afectados por esta – no fundo, a inteira humanidade – devem ter lugar na decisão das respostas a dar (p.25). O livro é dedicado “aos que cuidam”, categoria em que, em rigor, e sem o explicitar, compreendemos que o autor, cremos que com razão, inclui os amantes da sabedoria: interpretar aquilo que está a acontecer também é importante, e conhecer e designar cabalmente a natureza da crise é condição necessária para que possamos tomar as melhores decisões, na medida em que “boa parte dos nossos erros práticos devem-se a falhas teóricas”(p.30).