Convido o leitor a ir a uma livraria e a abrir bem os olhos. O livro mais recente da Lua de Papel distingue-se desde logo porque tem quatro orifícios circulares na capa, no lugar das letras – lê-se à primeira vista Tud que nã vem s e, à segunda vista, Tudo o que não vemos. Cada orifício abre-se para quatro imagens: uma quinta de salmão, um poço petrolífero, um laboratório químico e uma câmara de vigilância. A capa, de Maria Manuel Lacerda, é bem conseguida. Assim como o título em português. Traduzindo à letra o título original, teria ficado “A bolha da realidade”, e só haveria um orifício, o “o” em bolha. O longo subtítulo em inglês esclarece ao que vem o livro: “Pontos mortos, verdades escondidas e as ilusões perigosas que moldam o nosso mundo”. Tudo o que não vemos quer que vejamos para lá dos nossos sentidos, para além dos nossos quadros mentais, para além dos nossos enganos quotidianos. O livro não só nos convoca a atenção para o que não vemos como nos inquieta, solicitando a nossa ação transformadora.
O livro tem mais originalidades além da capa. Foi impresso em papel de cana de açúcar que, segundo informa a badana, é do mais ecológico que há. As páginas pardacentas, em vez de virem da celulose das árvores, vêm da fibra da cana, que cresce mais rapidamente.
Quem quer abrir-nos os olhos? Chama-se Ziya Tong, tem 40 anos e é jornalista de ciência na televisão canadiana. Nascida em Londres de pais sino-macedónios, viveu a infância em Hong Kong para depois se mudar para o Canadá, onde fez uma licenciatura em Psicologia e Sociologia e um mestrado em Comunicação Social. Pivô durante dez anos do programa Daily Planet, do Discovery Channel, apresentou outros programas para outros canais. Tudo o que não vemos, saído em 2019 na Penguin Random House, é o seu primeiro livro. Fotogénica como é, o seu rosto teria ficado bem na badana.
A obra resulta da grande experiência de Tong no jornalismo televisivo. O estilo da narração tem a ver com o do guião de um documentário, com frequentes mudanças de paisagens, planos e figuras, procurando manter uma tensão que prenda o telespetador, quer dizer, o leitor. Passamos rapidamente dos viveiros piscícolas para o reconhecimento facial pela inteligência artificial. Tong não só sabe escrever como está bem informada sobre ciência, o que não admira, depois de ter entrevistado tanta gente e de ter corrido meio mundo em reportagem. Li-o num fim de semana e, no final, não estou nada admirado com as recensões muito encomiásticas de personalidades como Naomi Klein, ativista antiglobalização canadiana e ensaísta (autora de bestsellers como O Mundo em Chamas, Presença, 2020, e Dizer Não Não Basta, Relógio d’Água, 2017), e Jane Goodall, primatóloga e antropóloga britânica e autora de numerosos livros (nenhum deles, infelizmente, em português europeu). É, de facto, um grande livro. Alguns dos melhores livros de divulgação de ciência são hoje escritos por profissionais da comunicação, que conseguem uma boa visão de conjunto e dominam os truques da comunicação. Veja-se o caso de A Terra Inabitável, de David Wallace-Wells, saído na mesma editora e pela pena do mesmo tradutor, João Carlos Silva.
Tong cita bons autores. Cita Proust, logo na introdução: “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos”. Cita também Sagan e Harari, ambos referências para ela. O seu estilo inspira-se no deles.
O que podemos ver para além daquilo que normalmente vemos? Para nos abrir os olhos, a autora leva-nos a ver o que é invisível a nossos olhos (mas que a ciência e a tecnologia permitem ver), a ver aquilo que a nossa civilização nos esconde para que não fiquemos chocados (designadamente, fontes de energia, origens da alimentação e destino dos dejetos) e a ver aquilo que a nosso quadro mental nos impede de ver (devido à nossa história e educação). Chama a esses três aspetos, que ocupam as três partes do livro, “ângulos mortos”: podem ser ”biológicos”, “sociais” e “civilizacionais”.
Gostei mais da primeira e da terceira partes, respetivamente sobre as limitações da nossa visão e sobre as limitações das escalas temporais e espaciais em que vivemos. A segunda parte diz o que tenho ouvido a vegetarianos: a carne que consumimos vem de sítios cuidadosamente escondidos. A matança mecanizada de frangos é descrita pela autora de uma maneira que a mim, que gosto de frango, me levará a hesitar na próxima vez que estiver à porta de uma churrascaria.
Neste livro pude confirmar com exemplos novos várias coisas que já sabia como, por exemplo, a nossa reduzida capacidade visual. Galileu – um dos génios que nos abriram os olhos – inaugurou a ciência moderna quando apontou pela primeira vez o telescópio para o céu. Mas foi também ele que observou pulgas de perto quando lhes apontou um microscópio, que precedeu por pouco o telescópico. A Revolução Científica foi, em larga medida, a invenção de instrumentos. Além disso, a janela para o mundo que são os nossos olhos só é sensível a uma gama bastante limitada do vasto espetro de luz: ao contrário de nós, as abelhas conseguem ver no ultravioleta e algumas serpentes conseguem ver no infravermelho. E é possível “ver” sem ser com a vista: os morcegos “veem” com os ouvidos, por meio da ecolocalização, uma espécie de radar natural. Por falar em morcegos, recordei neste livro as aventuras do espeleólogo francês Michel Siffre, que li em jovem no livro À Margem do Tempo (Europa-América, 1965). Aquele explorador, numa experiência em 1972 financiada pela NASA, passou mais de seis meses numa caverna do Texas, sem nenhuma maneira de saber as horas. O seu ritmo circadiano passou de 24 para 48 horas, com maiores tempos de vigília e de sono. E com crises mentais: sem a noção do tempo, sentimo-nos perdidos.
Aprendi também coisas que não sabia. Sobre dejetos, Tong cita David Waltner-Toews, epidemiologista canadiano e especialista em excrementos, que nos diz que “em 2013, com mais de 7000 milhões de pessoas na Terra, a produção humana total aproximou-se dos 400 milhões de toneladas de merda por ano”. É, convenhamos, para usar a mesma palavra, muita merda! E por falar em resíduos biológicos, aprendi também que os sami, povo indígena da Finlândia, têm uma unidade de distância muito engraçada, chamada poronkusema, que é definida como a distância que uma rena pode percorrer antes de ter de parar para urinar. São 7,5 quilómetros, mais ou menos, porque as bexigas das renas não são todas iguais.
A autora, além de informações curiosas, seduz-nos com comentários curiosos. Sobre as petrolíferas: “Num mundo completamente justo, as companhias haviam de nos pagar para usarmos gasolina”. Sobre os direitos dos cursos de água e dos animais: “No fim de contas, se os rios e os chimpanzés tiverem direitos, o que virá a seguir? O nosso bacon e os nossos ovos exigirão liberdade?” E sobre a economia: “Demos a nós próprios o direito de comprar e vender espaço, de comprar e vender tempo. Na verdade, a base da economia global é essa: a de que podemos ser donos das próprias dimensões em que habitamos”.
O último capítulo, intitulado “Revolução,” abre com uma frase de Einstein: “É essencial um novo tipo de pensamento se a humanidade quiser sobreviver e passar a níveis mais elevados”. Eu, que desconfio sempre das citações de Einstein, fui logo procurar a fonte e a frase, impressa num número do New York Times de 1946, não é fake. Einstein estava, no pós-guerra, a pensar na bomba atómica, mas hoje devemos pensar na ameaça que é a destruição do planeta.
Tong termina com um punch, como às vezes os realizadores acabam os filmes, deixando-nos uma mensagem forte. Vendo bem a longa jornada humana, as probabilidades de estarmos na Terra eram assaz diminutas. Mas conseguimos chegar aqui, munidos de ciência e tecnologia. Como ela diz, “os humanos são a única espécie na Terra com superpoderes artificiais”. Acontece agora que, com as ameaças ao ambiente pelas quais somos responsáveis, as probabilidades de continuarmos aqui estão a diminuir a olhos vistos. Estará à vista o nosso fim? Tong conclui, interpelando diretamente o leitor: “Nem Hollywood seria capaz de imaginar um argumento melhor. E você, o herói desta história, não conseguiria encontrar-se no meio de uma narrativa mais épica, invulgar ou extraordinária”. Cabe-nos a nós, de olhos bem abertos, usar os nossos poderes em favor da Terra, isto é, da nossa espécie.