Face aos resultados recentes de alguns processos criminais, levantou-se de novo um conjunto de críticas dirigidas ao MP enquanto instituição, no pressuposto de que este prossegue uma agenda própria com reflexo direto no exercício da ação penal.
A verdade, porém, é que hoje, mesmo constituindo o MP formalmente uma magistratura hierarquizada, cada um dos seus magistrados, enquanto titular e responsável único do processo – inclusive na fase de investigação –, detém um grau de autonomia decisória tão vincado (e reivindicado) que as suas decisões quase só a ele responsabilizam.
As decisões de acusar e arquivar e, bem assim, todas aquelas que presidiram à orientação das investigações, nelas se incluindo a do momento da prolação dos despachos que dão destino ao inquérito, apenas podem, por isso, ser assacadas a cada um dos concretos titulares dos processos que as assumiram.
Quando de processos específicos se trate, criticar, portanto, as opções do MP não pode ter, hoje, o sentido abrangente que já teve.
Não têm esse sentido as críticas e, refira-se, não o têm igualmente os elogios.
Todavia, reconheça-se também que a muito rígida especialização organizacional do MP em fases processuais dificulta ainda, em muitos casos, a definição das responsabilidades concretas que podem ser assacadas aos sucessivos titulares dos processos e, por essa mesma razão, a análise global da atuação do MP.
O afastamento prolongado – e quase sempre desejado – dos magistrados encarregados da investigação da fase de julgamento produz, além disso, outros efeitos que urge analisar.
Tende, desde logo, a justificar e a fechar em si própria a lógica específica das decisões processuais que determinam, nessa fase, o destino imediato da investigação: refiro-me ao arquivamento e, principalmente, à acusação.
Isto, mesmo que, sendo o processo penal português orientado pelo princípio do acusatório, este privilegie, naturalmente, a fase de julgamento como o momento determinante da realização da justiça.
Donde, em coerência, seriam a estratégia e o possível sucesso em julgamento que deveriam nortear, no essencial, a formulação da acusação, e não, como por vezes acontece, o efeito público de eficácia momentânea que esta, em si mesma, necessariamente produz.
Além disso, a mencionada cissura na organização do MP cria, inevitavelmente, dificuldades de articulação interna e duas culturas distintas – e, por vezes, aparentemente antagónicas – no seu seio.
Uma – a da investigação especializada – tende, inevitavelmente, a ser mais próxima da cultura policial, inclusive nos aspetos mais publicitários relacionados com a apresentação dos seus resultados, tendo em vista, amiúde, a projeção de uma imagem pública de eficiência da instituição.
A outra – a que se desenvolve, sem especialização, nos tribunais e em julgamento público – é mais conforme com a vertente constitucional do MP enquanto magistratura, regendo-se, mais visivelmente, pelo princípio da objetividade, e por isso é mais próxima da cultura judicial, que privilegia claramente os aspetos mais garantísticos do processo penal.
Todavia, mesmo que muito relevante para a realização da justiça, esta última fica sujeita a alguma obnubilação interna e externa e, portanto, também a alguma incompreensão.
Isto, uma vez que a imagem do caso foi previamente determinada pela impressividade do conhecimento público da acusação e foi ela que, no momento em que foi dada, projetou a aparência de eficácia do MP enquanto instituição.
A tensão entre ambas as culturas que coexistem no MP – e que é hoje, notoriamente, mais evidente – continua, no entanto, pouco analisada e valorada, dentro e fora desta magistratura.
Porém, sem essa valoração crítica, o entendimento da atuação do MP – enquanto magistratura hierarquizada – torna-se hoje mais difícil, se não, em alguns casos, impossível.
Será, por isso, mais eficiente que as críticas que visam a atuação concreta do MP nos processos se refiram agora, como acontece com os juízes, mais à intervenção específica e individualizada de cada um dos magistrados titulares das diferentes fases dos processos do que a uma apreciação geral e abstrata da instituição a que pertencem.
Não esquecendo também, a este propósito, que o MP é, constitucionalmente, constituído por magistrados responsáveis pelos seus atos.
Mas, tendo-se optado por eleger a posição e a responsabilidade singular de cada um dos membros do MP pelas decisões concretas por eles assumidas nos processos, em detrimento de uma visão institucional que só uma intercessão hierárquica processual consistente permitiria, importa reequacionar, porventura, a razão de ser da separação ainda tão rígida entre as estruturas e os quadros das magistraturas.
Questão diferente, mas que, obviamente, não pode deixar de ser enunciada também, é a de saber se este figurino, centrado, no fundamental, na responsabilidade individual dos magistrados do MP pelas decisões que tomam, é o que a Constituição quis, de facto, para este órgão de justiça.