Depois de outras obras, mais técnicas e volumosas, Maffei publicou nos últimos anos três livros breves com a palavra “elogio” no título que merecem um grande elogio: Elogio da Lentidão (Il Mulino, 2014), Elogio da Rebeldia (idem, 2016) e Elogio da Palavra (idem, 2018). Os três foram publicados pela Edições 70 em português, começando pelo Elogio da Palavra (2018), continuando com o Elogio da Lentidão (2019) e terminando agora com o Elogio da Rebeldia (2020). Para mim o melhor é precisamente o último título em italiano e o primeiro em português, que ganhou o Prémio Asimov de 2019 de livros de divulgação do Instituto Científico Gran Sasso em Áquila e do Instituto Nacional de Física Nuclear (um prémio original pela maneira como é atribuído, pois os jurados foram mais de dois mil estudantes universitários). O grafismo das edições portuguesas é da FBA, uma empresa de Coimbra que é uma das melhores casas de design gráfico no país e no mundo. As capas baseiam-se todas, como está agora em voga, no grafismo das letras, destacando as palavras principais de cada livro: Lentidão, rebeldia, palavra. A lentidão é azul, a rebeldia é preto e a palavra é verde. Quem pegar num dos livros, lê-lo-á em pouco tempo, mesmo que sorva lentamente as palavras, e irá procurar as outras cores.
Os três livros estão relacionados, para além evidentemente de partilharem o autor. Elogiam três conceitos interligados que estão sob ameaça no mundo de hoje. A lentidão precisa de elogio, porque a vida contemporânea está a ser excessivamente rápida (sendo certo que a pandemia a abrandou um pouco). Seguiu-se o elogio da rebeldia porque esta é uma atitude rara mas imperiosa num mundo dominado pelo lucro (Galileu, que foi um rebelde, dá o nome a um dos capítulos deste livro: “O que diria Galileu?”). E, por último, surgiu o elogio da palavra, que tem vindo a perder terreno na luta contra a imagem (dantes dizia-se que uma imagem vale mais do que mil palavras, mas hoje parece que vale pelo menos um milhão). A apreensão de uma palavra, ao contrário de uma imagem, e ainda mais de uma frase, ao contrário de um vídeo, exigem um certo tempo, porque o nosso cérebro apreende mais depressa uma imagem do que uma palavra. Galileu, até porque não dispunha da necessária tecnologia, não fez uma selfie nem gravou um vídeo no final da sentença dada pelo Santo Ofício, em que o obrigaram a abjurar, concordando com a Igreja que a Terra estava parada no centro do mundo. Mas comunicou. Segundo a lenda, o sábio pisano – Galileu é da terra onde ensinou Maffei – terá dito escassas palavras: E pur si muove, “E todavia move-se”. Si non è vero, è ben trovato, para usar um provérbio italiano de autor anónimo.
Os Elogios de Mafei são ensaios com menos de 160 páginas, num formato que é quase de bolso. O autor escreve bem – e nessa arte está na senda de Galileu, que o escritor Ítalo Calvino, um italiano nascido em Cuba, considerava o melhor prosador na língua de Dante (este era, sem dúvida, o expoente na poesia). Parte dos seus sólidos conhecimentos de neurociências, mas serve-se de uma cultura de banda larga, que inclui a literatura, as artes visuais, a história e a filosofia. Por exemplo, só para falar de literatura, no Elogio da Palavra, Maffei cruza, entre outros, Michel Montaigne, Emily Dickinson, Stéphane Mallarmé e Walter Benjamin, e, nas artes visuais cruza, também entre outros, Ambrogio Lorenzetti, Henri Matisse, René Magritte e Paul Klee. São livros que cruzam fecundamente ciência e arte, livros de um humanista que nos dá eloquentes lição de humanismo.
O elogio triplo é um elogio ao humanismo, conforme assinala Luca Seriani, o linguista e filólogo italiano que escreveu o prefácio do Elogio da Palavra. A palavra é o princípio da escrita, mas é também o princípio do pensamento e, portanto, o princípio do cérebro humano. Maffei, depois de nos seduzir logo na abertura do livro com uma citação de Dickinson (“não conheço nada no mundo com tanto poder como a palavra”), começa por nos lembrar a bela história de As Mil e Uma Noites (há uma boa tradução portuguesa recente: E-Primatur, 2017): é a palavra que permite salvar a vida de uma jovem condenada à decapitação. Podia ter também começado pela frase do Evangelho de S. João «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus», mas esta citação aparece mais adiante no livro, como não podia deixar de ser. “Logos” em grego significa a palavra, o verbo, mas também, por extensão, o discurso e a razão. O autor propõe-se fazer uma “calorosa defesa da palavra”. E faz: “Cada homem é a sua narrativa, nem que seja aquela que ele narra a si mesmo, um grão de poeira da história.”
Por que é preciso defender a palavra? A abrir um dos capítulos vem uma citação de Calvino que se percebe bem nestes dias de peste: “Por vezes, parece-me que uma epidemia pestilencial atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, ou seja, no uso da palavra.” No nosso tempo digital, a palavra está ofuscada pelo império das imagens. Basta reparar na recente subida em flecha do consumo da Netflix e HBO, com lucros em alta, em vez da leitura de livros, em trágica queda. É ver o espaço ganho por redes sociais como o Instagram ou o Tik Tok, onde a frivolidade campeia, aos blogues de autores ou sítios noticiosos credíveis. Comunica-se por imagens – por exemplo usando emojis e, quando se usam as palavras para comunicar, privilegia-se um conjunto minúsculo: os SMS nos telemóveis e os tuítes, uma espécie de SMS da Internet confinado no número de caracteres.
Maffei refere-se ao cérebro em todos os seus elogios. No Elogio da Palavra: “A evolução demorou milénios a modificar o cérebro para dar a palavra ao homem. Este depois inventou a escrita para que as palavras tivessem significados permanentes e fossem próteses da memórias.” Embora reconhecendo o primado do social no humano chama a atenção dos perigos do “cérebro globalizado.” Como diria Magritte, “isso não é um cérebro”. Na Internet está inundada de exibição em vez de informação, tagarelice em vez de debate, propaganda em vez de racionalidade: “O cérebro globalizado é entregue gratuitamente no domicílio através dos meios visuais e verbais, autênticos traficantes da mente, como o melhor dos cérebros possíveis, indispensável para o futuro, para o progresso e para o aumento do PIB”. O cérebro do autor – que é único – revolta-se contra esse “cérebro globalizado”, que recusa a lentidão e a palavra que o cérebro individual exigem.
Para termos cérebros precisamos de escola. Maffei defende a “escola da palavra”. A sua posição está em linha com obras recentes da filósofa norte-americana Martha Nussbaum e do professor italiano de Literatura Nuccio Ordine, que ele cita. A primeira, em Sem Fins Lucrativos (Edições 70, 2019), defende que a democracia precisa das humanidades e o segundo, em A Utilidade do Inútil (Faktoria K, 2017), pugna pela necessidade do saber desinteressado. A escola deveria recuperar o poder da palavra, em vez de dar certificados a analfabetos funcionais. Maffei levanta a hipótese de que a actual incúria da escola tenha sido programada: “Súbditos mudos, não educados para a palavra e para o pensamento, são cidadãos funcionais para uma democracia de fachada.” Receio que ele tenha razão.
Maffei interessou-se na sua vida profissional pelos mecanismos de visão do cérebro. A visão é o posto avançado do cérebro, ao qual está ligada intimamente. O autor italiano recorre ao exemplo de Galileu, o primeiro a olhar com o telescópio para a Lua, descobrindo a existência de montanhas e vales. Conseguiu ver a profundidade porque o seu olhar estava habituado ao modo como a pintura representava o relevo pelo claro-escuro, uma técnica em que Leonardo da Vinci foi mestre. E Galileu percebeu melhor o que viu depois de o descrever. Olhar não é o mesmo que ver, pois as palavras ajudam a ver. Galileu, ao descrever o nosso satélite natural, eleva-se a sua prosa, segundo Calvino, a um nível “lunar”.
Na sociedade de consumo desenfreado, onde sobressai o consumo rápido de imagens, são várias as formas de olhar, mas não há tempo para ver. A conclusão de Maffei é clara: “O ver está a ser ultrapassado pelo olhar, o pensar pelo crer, o conhecimento pela sensação, o cérebro ‘do conhecimento’ pelo ‘cérebro motor. ´O fazer ‘não importa o quê’ e o mover-se ‘não importa em que direcção’ são já, em si mesmos, desejados.” O corpo move-se, mas o cérebro está parado.
E, convicto de que vê uma pintura de um modo diferente depois de alguém lha ter descrito, chega logo à sua conclusão: “As palavras ensinaram-me a ver. O grande armazém do ver é feito de palavras. Sou levado a pensar que quem tem mais palavras vê mais. As palavras são a minha memória, a minha narrativa (…) De resto, o milagre da evolução gerou as palavras para que o homem possa narrar, para que na sucessão das gerações não se perca o património das experiências vividas.”
Ainda bem que com a publicação destes três livros não se perdeu o rico património das experiências – científicas e artísticas, quer dizer humanas – vividas ao longo da sua vida por Lamberto Maffei. É um cérebro único, mas transmissível porque o podemos ler. Só ele poderia juntar as palavras, muitas, e as imagens, poucas, como ele o faz, doseando-as por três livros que, sendo pensados por ele, nos incitam a pensar por nos próprios. Se temos um cérebro, só nosso, é nossa obrigação usá-lo. Deveria ser óbvio, mas talvez valha a pena lembrar que não há liberdade se não houver pensamento, ou se apenas houver o pensamento único do “cérebro globalizado.”