Muitas vezes ouvimos a expressão ‘segundo cérebro’ ou ‘gut feeling’ para descrever o nosso trato gastrointestinal. Mas será que esta expressão terá algum significado real? Como se sabe, o nosso trato gastrointestinal encontra-se colonizado por uma vasta quantidade de microrganismos. Geralmente quando se pensa em microrganismos, como bactérias e vírus, apenas vemos o seu lado negativo, agentes causadores de doenças. No entanto, no trato gastrointestinal muitos destes microrganismos vivem numa relação mutualística connosco, em que obtêm os nutrientes de que necessitam para sobreviver, convertendo-os através do seu metabolismo em compostos importantes para o nosso funcionamento. Quando pensamos no trato gastrointestinal pensamos imediatamente nos probióticos que se encontram muitas vezes nos iogurtes que ingerimos ou nos suplementos alimentares que tomamos para complementar ou estimular os nutrientes que possuímos.
Estudos recentes apontam para uma ligação ainda mais estreita entre o nosso trato gastrointestinal e o cérebro, desde certos desejos alimentares até à modelação do nosso humor. Quando os microrganismos processam os alimentos que ingerimos, produzem produtos chamados metabolitos. Por exemplo, estudos efetuados para perceber como funciona o nosso desejo por chocolate demonstraram que as pessoas com estes desejos produzem metabolitos diferentes das que não sentiam esses desejos.
Os microrganismos do trato gastrointestinal interferem com o nosso apetite directamente através da produção de compostos que mimetizam as hormonas da fome e da saciedade. Por exemplo, indivíduos obesos tendem a ter menor diversidade microbiana no trato gastrointestinal, o que poderá explicar o fato de as pessoas com excesso de peso terem geralmente menor capacidade de controlar os desejos alimentares. Os microrganismos do trato gastrointestinal produzem uma vasta gama de neurotransmissores como a dopamina e a serotonina. A dopamina representa um papel bastante importante no controlo motor bem como nas respostas emocionais, regulando funções vitais do cérebro como a nossa disposição (motivação, excitação, gratificação), sono, memória, capacidade de aprendizagem e concentração. A serotonina, muitas vezes chamada o composto químico da felicidade (contribuindo para o nosso bem-estar e felicidade) desempenha um papel fundamental no nosso apetite, emoções, comportamento social e em funções cognitivas, motoras e autonómicas. É sabido que mais de 50% da dopamina e 90% da serotonina encontradas no nosso corpo são geradas no trato gastrointestinal, em conjunto com cerca de outros 30 neurotransmissores. Um vasto número de estudos tem demonstrado uma ligação bastante estreita entre os microrganismos do trato gastrointestinal e o stress, depressão e ansiedade. Estudos em ratos crescidos em condições estéreis (ausência de microrganismos) demonstraram que estes exibiam uma reação ao stress exagerada, sendo que o efeito era revertido através da colonização dos ratos por probióticos. Um estudo similar demonstrou que ratos crescidos em condições estéreis exibiam um aumento de sintomas semelhantes à ansiedade, sintomas estes que melhoravam após colonização por bactérias. E embora não seja possível comparar diretamente os comportamentos desenvolvidos em ratos com os desenvolvidos em humanos, é sabido que certas espécies de probióticos (Bifidobacterium e Lactobacillus) demonstraram um efeito positivo na redução de sintomas semelhantes à depressão e ansiedade em humanos.
Por outro lado, os microrganismos do trato gastrointestinal podem também influenciar a neuroplasticidade do cérebro, isto é, a capacidade que o nosso sistema nervoso tem de mudar, de se adaptar e moldar a um nível estrutural e funcional ao longo do desenvolvimento e quando sujeito a novas experiências, através do aumento da produção de fatores relevantes para a neuroplasticidade. Prebióticos, alimentos metabolizados especificamente por bactérias benéficas aumentam os níveis de determinados fatores de neuroplasticidade, de cortisol durante o despertar e alteram o processamento emocional, induzindo também hormonas de saciedade.
Por isso, da próxima vez que pensarmos em microrganismos é importante não pensar apenas na forma simplista de agentes causadores de doença, mas imaginarmos também que estes têm um papel muito mais vasto e importante na nossa vida enquanto seres humanos, incluindo funcionando como o nosso ‘segundo cérebro’ influenciando-nos a todos os níveis. São os nossos ego e alter-ego juntos… os nossos amigos invisíveis que nos moldam e nos influenciam mais do que alguma vez pensamos ser possível. Da próxima vez que pensarem em chocolate, não se sintam culpados, mas pensem que é um desejo dos nossos amigos, os microrganismos.
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silvia.monteiro@tecnico.ulisboa.pt