No passado dia 3 de Maio deixou de estar em vigor o estado de emergência, que o Presidente da República tinha decretado pela última vez através do seu decreto 20-A/2020, de 17 de Abril. Deveriam, assim, os cidadãos ter recuperado plenamente os direitos fundamentais que lhes tinham sido parcialmente suspensos pelo art.o 4.o do decreto 20-A/2020, a saber, os direitos de deslocação e fixação no território, os direitos de propriedade e iniciativa económica privada, os direitos dos trabalhadores, o direito de deslocação internacional, os direitos de reunião e manifestação, a liberdade de culto na sua dimensão colectiva, a liberdade de aprender e ensinar e o direito à protecção dos dados pessoais.
Sucede, porém, que, no passado dia 30 de Abril, para produzir efeitos às 00h00 do dia 3 de Maio, o Governo declarou, através da resolução do Conselho de Ministros 33-A/2020, o estado de calamidade em todo o território nacional. Esse estado de calamidade não tem cobertura constitucional, que apenas contempla o estado de sítio e o estado de emergência, precisamente para situações de calamidade pública, estando apenas previsto na Lei de Bases da Protecção Civil. O art.o 21.o, n.o 2 dessa lei apenas permite neste âmbito: a) a mobilização civil de pessoas, por períodos de tempo determinados; b) a fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos; c) a fixação de cercas sanitárias e de segurança; d) a racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo de bens de primeira necessidade. Trata-se de medidas específicas que estão muito longe de uma suspensão generalizada dos direitos fundamentais.
Ora, o regime aprovado pela resolução do Conselho de Ministros 33-A/2020 para o estado de calamidade vai muito mais longe do que é permitido por esta disposição legal. Em primeiro lugar, sujeita a confinamento obrigatório, no local definido pelas autoridades de saúde, os doentes e os infectados, bem como as pessoas sob vigilância, sendo a sua situação comunicada às forças de segurança do local de residência (art.o 2.o). Depois, sujeita todas as restantes pessoas a um dever cívico de recolhimento domiciliário, só sendo autorizadas certas deslocações (art.o 3.o). Além disso, obriga as empresas a adoptar o regime de teletrabalho (art.o 4.o), determina o encerramento de uma série de instalações e estabelecimentos (art.o 5.o) e suspende a actividade de outros, com algumas excepções (art.o 6.o). É ainda condicionada a prática de actividade física e desportiva (art.o 16.o) e proibida a realização de celebrações e de outros eventos que impliquem uma aglomeração de pessoas superior a dez, que só pode ser autorizada em situações justificadas (art.o 18.o). É da mesma forma condicionada a realização de funerais, podendo ser impedida a participação nos mesmos de todas as pessoas que não o cônjuge ou unido de facto, ascendentes, descendentes, parentes ou afins (art.o 19.o).
Perante este regime, cabe perguntar se para os cidadãos mudou alguma coisa com o levantamento do estado de emergência, que vigorou no país durante 45 dias. A resposta parece ser a de que não mudou praticamente nada. As pessoas sentiram-no claramente no passado domingo, Dia da Mãe, em que continuaram a ser impedidas de visitar as suas mães que residissem fora do concelho, sendo paradas pela polícia se praticassem um acto tão normal como uma simples deslocação para um concelho limítrofe dentro da mesma área metropolitana.
O art.o 19.o, n.o 1 da Constituição dispõe expressamente que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”. O que ocorreu às 00h00 do passado dia 3 de Maio foi que o país passou de um estado de emergência declarado constitucionalmente para um estado de emergência não declarado constitucionalmente. Tal significa que Portugal passou a viver num verdadeiro estado de calamidade constitucional.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990