No passado dia 18 de Março, o Presidente da República, através do decreto 14-A/2020, e depois de obtida a necessária autorização do Parlamento, declarou o estado de emergência com fundamento numa situação de calamidade pública. Nessa altura, o primeiro-ministro declarou publicamente que não achava o estado de emergência necessário, uma vez que se tratava de uma medida extraordinariamente grave, e que através do decretar do estado de calamidade, previsto na Lei de Bases da Protecção Civil, se conseguiria impor de forma generalizada restrições às deslocações das pessoas.
O estado de emergência veio posteriormente a ser sucessivamente renovado pelo Presidente da República através dos decretos 17-A/2020, de 2 de Abril, e 20-A/2020, de 17 de Abril, tendo esses diplomas agravado sempre as restrições aos direitos fundamentais dos cidadãos previstos na Constituição. Na sua última versão, o art.o 4.o do decreto 20-A/2020 suspendia parcialmente os direitos de deslocação e fixação dos cidadãos, os direitos de propriedade e iniciativa económica privada, os direitos dos trabalhadores, o direito de deslocação internacional, os direitos de reunião e manifestação, a liberdade de culto na sua dimensão colectiva, a liberdade de aprender e ensinar e o direito à protecção de dados pessoais, ao mesmo tempo que interditava todo e qualquer acto de resistência activa e passiva às ordens das autoridades.
Agora, sem que a situação de pandemia se tenha alterado significativamente, pretendem o Presidente da República e o Governo abandonar o estado de emergência, ainda que o Governo anuncie que irão manter-se as restrições às deslocações. O Governo pretende, assim, voltar à sua intenção inicial de, em lugar do estado de emergência, aplicar o estado de calamidade previsto na Lei de Bases de Protecção Civil. É verdade que, nos termos do art.o 21.o, n.o 2 dessa lei é possível decretar a fixação de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas e a fixação de cercas sanitárias e de segurança, mas não é permitida, com base nesta lei, uma suspensão parcial generalizada de direitos fundamentais, como ocorre no estado de emergência. Acresce que a Lei de Bases de Protecção Civil atribui ao Governo toda a competência para declarar o estado de calamidade, sendo o mesmo efectuado por simples resolução do Conselho de Ministros (art.o 19.o), sem qualquer intervenção do Parlamento ou do Presidente da República. Se esta solução for adoptada, veremos assim os direitos dos cidadãos a ser restringidos indefinidamente, apenas por intervenção das autoridades administrativas, sem a adequada cobertura constitucional e fora do controlo dos outros órgãos de soberania.
Não parece que o facto de o estado de emergência estar em vigor há 45 dias seja motivo para o mesmo ser levantado se a situação de calamidade pública que esteve na sua base não desapareceu, como todos reconhecem ser o caso. A evolução para uma situação de desconfinamento deve ser antes feita através do aligeiramento das medidas do estado de emergência, aquando da sua próxima renovação. Quando as medidas de confinamento deixarem de ser necessárias e o país voltar a uma situação normal, então deve ser levantado definitivamente o estado de emergência.
Agora, abandonar o estado de emergência e dizer que, afinal, tudo continua na mesma em relação às restrições aos direitos fundamentais implica transmitir aos cidadãos a mensagem de que todos os seus direitos podem ser a qualquer altura restringidos pelo Governo por simples resolução do Conselho de Ministros, independentemente de vigorar ou não o estado de emergência. Isso é que seria um verdadeiro estado de calamidade para o regular funcionamento das instituições democráticas.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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