A desconfiança sobre o número de infeções com covid-19 na China é um tema que tem estado na ordem do dia e as acusações contra Pequim têm subido de tom nos últimos dias. Apesar de o país registar cerca de 83 mil casos positivos até hoje, um estudo publicado esta quinta-feira por investigadores de Hong Kong aponta que esse balanço pode, afinal, ser quatro vezes superior.
O número real poderá andar na ordem dos 283 mil casos, de acordo com os académicos da escola de saúde pública Universidade de Hong Kong, que publicaram um estudo na revista médica Lancet.
O documento explica que “quando surge uma nova doença infecciosa” é crucial que se definam critérios apropriados para a identificação dos casos portadores da infeção para efeitos de diagnóstico clínico e para “a monitorização da saúde pública”. Ao definir-se os critérios, o trabalho de rastreamento dos novos casos, ao longo do tempo, permite “estabelecer a velocidade de propagação” das infeções e intervir com eficácia, dizem os investigadores.
Ora, não aparenta ter sido isso que aconteceu na China, o que se reflete na identificação e registo dos casos com a doença, segundo a análise realizada pelos investigadores de Hong Kong, que utilizaram os dados recolhidos pela Organização Mundial de Saúde durante a sua missão em Wuhan. Entre 15 de janeiro e 3 de março, a “Comissão Nacional de Saúde da China utilizou sete versões” para definir os casos com covid-19. Diz o estudo que se o país tivesse adotado a quinta versão ao longo do surto, e com suficiente capacidade de testagem, se pode estimar que até 20 de fevereiro a China teria identificado 232 mil casos com covid-19 – até essa data, o país registou oficialmente 55 508 casos confirmados.
A definição inicial aplicada por Pequim para identificar portadores da covid-19 foi estreita, mas foi sendo “gradualmente alargada para permitir a deteção de mais casos à medida” que o conhecimento sobre a infeção aumentou.
Tensão entre Pequim e Washington
A publicação deste estudo vem numa altura em que os Estados Unidos e a Austrália insistem numa investigação independente sobre o que aconteceu no país – além da crescente tensão entre as duas potências mundiais -, à qual Pequim tem resistido.
O embaixador chinês nos EUA, Cui Tiankai, por exemplo, apelou a uma “séria reavaliação” das fundações do relacionamento entre os dois países esta quarta-feira, criticando os políticos norte-americanos de ignorarem cientistas e de fazerem acusações “sem fundamentos”, diz o Guardian.
A tensão tem subido de tom em ambos os lados. Também esta quarta-feira, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, disse que Washington acreditava que o Partido Comunistas Chinês falhou em reportar o surto do novo coronavírus em tempo útil.
Mais agressivas têm sido as declarações de Donald Trump, Presidente dos EUA, exacerbando teorias tais como a de que o vírus saiu de um laboratório de armas biológicas chinêsas, sem apresentar provas – quando a OMS sublinha que a origem provável do vírus proveio de animais. Somam-se também as provocações de Trump, qualificando a doença como o "vírus chinês" – e suspendeu os fundos que Washington atribui à organização (é o maior doador) por considerá-la "sino-cêntrica". Pelo bem estar da saúde pública global, responsáveis das Nações Unidas já pediram ao chefe da Casa Branca para reverter a decisão para salvar vidas, visto estarmos no meio de uma pandemia sem precendentes, diz o Washington Post.
O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, tem sido dos maiores aliados de Washington nas críticas à China. Morrison apelou esta quinta-feira a países como França, Alemanha (também criticaram a gestão da crise de Pequim) e EUA para que se faça pressão para que o inquérito seja realizado, sugerindo expandir o orçamento da OMS em troca dos seus inspetores deterem o poder de entrar imediatamente num país no caso de um surto, relatou a Reuters.
E a OMS, que nunca esteve no seio de uma tão intensa luta política, acabou por receber uma prenda de Pequim, fazendo o contrário de Trump: doou 30 milhões de dólares à organização da ONU.
A liderança do diretor da OMS, Tedros Ghebreyesus até recebeu elogios do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Geng Shuang, quando este anunciou a doação. Por estar, de acordo com o porta-voz, "a cumprir ativamente os seus deveres objetividade e por estar a defender uma postura objetiva, científica e imparcial".
Pondo-se do outro lado da barricada, Pequim movimenta-se para apresentar uma imagem tradicionalmente ligada ao discurso de Washington, que se tem gradualmente, ao longo dos anos, afastado desse modo de estar na arena internacional mas que ganhou um grande empurrão com a administração Trump nesse sentido. Com este presente, a China "está a defender os ideais e princípios do multilateralismo e a defender o estatuto e autoridade das Nações Unidas", disse Chuang, citado pelo Washington Post.
Mas estes reposicionamentos e trocas de acusações públicas, "eventualmente até deliberadas" entre os dois países mais poderosos do mundo, segundo Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, podem estimular a xenofobia e racismo. "Alimentam o risco de muitas pessoas, nos respetivos países, verem os chineses ou os ocidentais como os culpados por esta crise sanitária. O próprio Presidente Trump acabou por se sentir obrigado a vir esclarecer, que o facto de se referir ao “vírus chinês”, não queria dizer que se devesse culpar os americanos de origem chinesa", disse ao i.
Com João Campo Rodrigues