A verdade na guerra à covid-19


Em 16 de Março passado foi apresentada uma petição por vários médicos e cientistas, pedindo mais transparência no acesso aos microdados sobre doentes suspeitos de covid-19.


Na sua comunicação do passado dia 18 de Março, destinada a justificar o estado de emergência, o Presidente da República considerou que a situação criada pela epidemia de covid-19 constituía uma “verdadeira guerra” em que, “como em todas as guerras, só há um efectivo inimigo, invisível, insidioso e, por isso, perigoso”. Mas prometeu como palavra de ordem “a verdade, porque nesta guerra ninguém mente nem vai mentir a ninguém”.

Essa afirmação corre o risco de não passar das boas intenções. Efectivamente, e como Sun Tzu escreveu em A Arte da Guerra há mais de dois mil anos, “a operação militar trabalha com o engano; logo, dissimule! Na guerra, demonstre sempre o contrário do que pretende. Assim, quando puder atacar, finja não ser capaz de fazê-lo. Quando for usar alguém, finja não usar. Quando agir a curta distância, finja estar longe. Quando actuar a longa distância, finja estar próximo”. É por isso tradicional dizer-se que a primeira vítima da guerra costuma ser a verdade, uma vez que nenhum combatente quer que se conheça a sua verdadeira posição no terreno.

Em Portugal começa a ser preocupante também a falta de informação nesta guerra à covid-19, para além da que consta do discurso oficial, cuja fiabilidade se tem mostrado duvidosa.

Em 16 de Março passado foi apresentada uma petição por vários médicos e cientistas, pedindo mais transparência no acesso aos microdados sobre doentes suspeitos de covid-19, considerando que a informação partilhada pelas autoridades de saúde era escassa e não estava a chegar à comunidade científica, à comunicação social e à população.

Mas a escassa informação que chega também não é rigorosa. Tivemos uma demonstração disso no passado dia 24 de Março, quando a DGS anunciou o número de infectados nos vários concelhos referindo 55 casos em Ovar, tendo o respectivo presidente da câmara anunciado imediatamente que o verdadeiro número de infectados no seu concelho era antes de 101, quase o dobro. Perante esta estranha discrepância, a DGS explicou que o número de casos no relatório sobre a distribuição geográfica apenas contava com números relativos a 54% dos casos confirmados. Questionada qual a justificação para apresentar um relatório considerando apenas cerca de metade dos casos confirmados, a DGS referiu que era por ausência de “informação fidedigna por concelho”. Mas se a informação não é fidedigna, não se compreende como é que passa a sê-lo cortando metade dos casos confirmados.

A situação conduziu a que, agora, o Ministério da Saúde pedisse aos delegados de saúde pública, que o representam nos municípios, para, no cumprimento do dever de informação pública, fazerem referência apenas aos dados disponibilizados pela DGS, não disponibilizando assim aos municípios o habitual boletim informativo para a covid-19. Trata-se de uma actuação inaceitável e que compromete claramente o esforço dos autarcas, que têm de tomar as medidas adequadas para proteger as suas populações perante esta grave epidemia.

Quer o art.o 5.o, n.o 2 do decreto do Presidente da República 14-A/2020, de 18 de Março, que decretou o estado de emergência, quer o art.o 7.o, n.o 2 do decreto 17-A/2020, de 2 de Abril, que o renovou, determinam que os efeitos dessa declaração não afectam, em caso algum, as liberdades de expressão e de informação. Está, por isso, plenamente em vigor o art.o 37.o, n.o 2 da Constituição, que proíbe que o exercício das liberdades de expressão e de informação seja impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. Impõe-se, por isso, que estas normas sejam cumpridas e possa circular livremente a informação sobre os dados do número de infectados com covid-19 em cada concelho. A defesa do Estado de direito assim o exige.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990