Correr atrás do prejuízo


Esta crise da covid-19 está a mostrar de forma eloquente que o Governo não merece os profissionais de saúde e os portugueses que tem. Os portugueses, habitualmente pouco disciplinados, compreenderam rapidamente a situação, foram para casa, deixaram as ruas, e os profissionais dos sectores da saúde, mesmo sem as armas necessárias, enfrentam corajosamente a doença…


Esta coluna semanal nasceu para pugnar por uma democracia de qualidade em vista da realidade portuguesa, em que o Parlamento não representa e não defende todos os portugueses por igual, para representar e defender principalmente os interesses das hierarquias partidárias, em que todo o poder está concentrado nos partidos à custa do enfraquecimento das instituições democráticas – Parlamento onde os deputados são escolhidos pelos chefes partidários, e não pelo povo, razão cimeira para que os eleitores se desinteressem da atividade política e se abstenham de participar nos diferentes atos eleitorais.

Presentemente, em Portugal e em todo o planeta vivemos uma tragédia que muitos comparam a uma guerra generalizada, quando, como sabemos, a verdade é a primeira vítima. O que é mais verdadeiro nos países de ditadura, como a China e a Rússia, ou simplesmente pouco democráticos e com instituições dependentes do Estado e enfraquecidas, como Portugal. Razão para que na presente pandemia de covid-19, o Governo não tenha resistido à tentação de aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço televisivo, onde o primeiro-ministro e outros governantes falam sem cessar, em vez de explicarem as razões por que não aproveitámos os meses de janeiro e de fevereiro para nos prepararmos para o que sabíamos iria chegar, nomeadamente fechando as fronteiras. Em vez disso, as medidas governamentais, mesmo as mais correctas, são anunciadas a conta-gotas, dia a dia, e no Serviço Nacional de Saúde falta quase tudo. Será que não sabíamos que os lares de idosos eram uma bomba-relógio ou que seriam necessários muitos milhares de testes? Ou se teríamos os materiais necessários para a protecção dos profissionais do SNS?

Temos uma das maiores indústrias de confecção, capaz de produzir e exportar batas, calças, máscaras e viseiras, e um sector de engenharia de inovação de produtos e de prototipagem que usa as mais modernas tecnologias, bem como produção de todos os artigos de plástico e as respetivas ferramentas, ou seja, tudo aquilo que estamos a comprar, tarde e a más horas, aos chineses. O facto de não sermos os únicos não altera a oportunidade perdida.

Esta crise da covid-19 está a mostrar de forma eloquente que o Governo não merece os profissionais de saúde e os portugueses que tem. Os portugueses, habitualmente pouco disciplinados, compreenderam rapidamente a situação, foram para casa, deixaram as ruas, e os profissionais dos sectores da saúde, mesmo sem as armas necessárias, enfrentam corajosamente a doença dia a dia. Diferentemente, passados três meses desta terrível experiência, ainda sobrevive a tese governamental de acionar as soluções à medida das necessidades, e nem mesmo mudou quando se tornou evidente que os testes, feitos de forma intensiva, evitam a propagação da doença. Sobre o uso de máscaras, acabo de ler uma declaração do principal especialista chinês desta pandemia, que afirma que o maior erro da Europa foi não utilizar máscaras, as tais que a Direção-Geral da Saúde diz não servirem para nada.

Há muitos anos que acredito que os maiores problemas do nosso tempo, em Portugal e em muitos outros países, como, aliás, na gestão da União Europeia, resulta de as lideranças não terem a preparação necessária para compreenderem a enorme rapidez das mudanças a que estamos sujeitos, em que a capacidade de previsão joga um papel determinante na governação das empresas e dos povos. Em Portugal, nomeadamente a actual geração de governantes do PS privilegia o curto prazo e não mostra a capacidade de previsão do futuro que o nosso tempo impõe, mesmo para o tempo mais próximo, razão por que há duas décadas enfrentamos sucessivas adversidades em relação às mudanças e às frequentes surpresas que são uma característica das sociedades modernas. Em Portugal e com este Governo, a prática do curto prazo tornou-se uma forma de sobrevivência política, apoiada na cedência aos partidos da geringonça e aos sectores mais corporativos da sociedade, e na completa ausência de ideias quanto ao futuro.

Felizmente, a covid-19 está a mostrar do que os portugueses são capazes e por todo o país surgem as iniciativas mais variadas de cidadãos, de empresas e de instituições, mostrando que não dormimos em tempos de dificuldade. Empresas e instituições da sociedade estão, ainda que tarde, a produzir máscaras, viseiras, óculos, batas e mesmo kits para testes. Algumas autarquias em crise, como no caso do Porto e de Ovar, tomaram a crise nas suas próprias mãos, desesperadas por verem morrer pessoas amontoadas nos lares, sem testes e sem saber durante dias o que fazer com os doentes – quando seria fácil requisitar hotéis com quartos individuais para acolher os idosos não infectados e transferir com rapidez os doentes para os serviços de saúde. O que está a ser feito a conta-gotas é esperar que passe e não comprometa o partido do Governo.

Todos sabemos agora que a economia mundial irá sofrer uma crise profunda, ainda que não se conheça toda a sua dimensão. Trata-se de um enorme problema, mas também uma oportunidade de fazer o que é justo: acabar com os paraísos fiscais, que anualmente roubam milhares de milhões de euros aos orçamentos dos Estados, com o objectivo de financiar a recuperação, dando a oportunidade aos donos do dinheiro de serem eles a fazer os investimentos e a criar os empregos, ou que sejam os Estados a fazê-lo.

Em 2017, escrevi ao nosso conhecido secretário-geral das Nações Unidas a explicar a forma simples como esta operação poderia ser feita: fixando um prazo para o retorno do dinheiro aos países de origem e alterando posteriormente a denominação de todas as moedas existentes no planeta, deixando o dinheiro não retirado dos paraísos fiscais sem valor de troca. Recebi a resposta, dizendo que o secretário-geral não deve fazer propostas, o que já se sabia, mas, pessoalmente, esperaria que a visibilidade pública do secretário-geral, que se debate com tanta falta de dinheiro, pudesse lançar a ideia na comunicação social, permitindo que ganhasse força global.

Na carta, escrevi o seguinte: "Decidi por isso fazer-lhe três desafios que sei arriscados e sem nenhuma garantia de sucesso. De facto, o risco para a sua carreira, aí no topo do mundo, é enorme, mas esse risco existe sempre, e também para que serve uma posição como a sua se limitada ao previsível e ao óbvio?" No final da carta, escrevi: "Sei disso, mas por isso mesmo vale a pena a iniciativa de colocar estes três desafios na agenda da política mundial, por quem tem a visibilidade pública suficiente para o fazer. Muitos dos grandes avanços civilizacionais não tinham no início melhores condições de sucesso. Por outro lado, a alternativa dos pequenos passos já foi procurada por outros e certamente terá continuidade no futuro. O problema é que com a aceleração do tempo tecnológico, político e económico, ficaremos cada vez mais longe de uma sociedade que possa sobreviver em boas condições".

Infelizmente, António Guterres, apesar de todas as suas muitas qualidades, não é o único a ter medo do futuro e a reagir apenas e tarde às dificuldades do presente.

 

 

 

Correr atrás do prejuízo


Esta crise da covid-19 está a mostrar de forma eloquente que o Governo não merece os profissionais de saúde e os portugueses que tem. Os portugueses, habitualmente pouco disciplinados, compreenderam rapidamente a situação, foram para casa, deixaram as ruas, e os profissionais dos sectores da saúde, mesmo sem as armas necessárias, enfrentam corajosamente a doença…


Esta coluna semanal nasceu para pugnar por uma democracia de qualidade em vista da realidade portuguesa, em que o Parlamento não representa e não defende todos os portugueses por igual, para representar e defender principalmente os interesses das hierarquias partidárias, em que todo o poder está concentrado nos partidos à custa do enfraquecimento das instituições democráticas – Parlamento onde os deputados são escolhidos pelos chefes partidários, e não pelo povo, razão cimeira para que os eleitores se desinteressem da atividade política e se abstenham de participar nos diferentes atos eleitorais.

Presentemente, em Portugal e em todo o planeta vivemos uma tragédia que muitos comparam a uma guerra generalizada, quando, como sabemos, a verdade é a primeira vítima. O que é mais verdadeiro nos países de ditadura, como a China e a Rússia, ou simplesmente pouco democráticos e com instituições dependentes do Estado e enfraquecidas, como Portugal. Razão para que na presente pandemia de covid-19, o Governo não tenha resistido à tentação de aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço televisivo, onde o primeiro-ministro e outros governantes falam sem cessar, em vez de explicarem as razões por que não aproveitámos os meses de janeiro e de fevereiro para nos prepararmos para o que sabíamos iria chegar, nomeadamente fechando as fronteiras. Em vez disso, as medidas governamentais, mesmo as mais correctas, são anunciadas a conta-gotas, dia a dia, e no Serviço Nacional de Saúde falta quase tudo. Será que não sabíamos que os lares de idosos eram uma bomba-relógio ou que seriam necessários muitos milhares de testes? Ou se teríamos os materiais necessários para a protecção dos profissionais do SNS?

Temos uma das maiores indústrias de confecção, capaz de produzir e exportar batas, calças, máscaras e viseiras, e um sector de engenharia de inovação de produtos e de prototipagem que usa as mais modernas tecnologias, bem como produção de todos os artigos de plástico e as respetivas ferramentas, ou seja, tudo aquilo que estamos a comprar, tarde e a más horas, aos chineses. O facto de não sermos os únicos não altera a oportunidade perdida.

Esta crise da covid-19 está a mostrar de forma eloquente que o Governo não merece os profissionais de saúde e os portugueses que tem. Os portugueses, habitualmente pouco disciplinados, compreenderam rapidamente a situação, foram para casa, deixaram as ruas, e os profissionais dos sectores da saúde, mesmo sem as armas necessárias, enfrentam corajosamente a doença dia a dia. Diferentemente, passados três meses desta terrível experiência, ainda sobrevive a tese governamental de acionar as soluções à medida das necessidades, e nem mesmo mudou quando se tornou evidente que os testes, feitos de forma intensiva, evitam a propagação da doença. Sobre o uso de máscaras, acabo de ler uma declaração do principal especialista chinês desta pandemia, que afirma que o maior erro da Europa foi não utilizar máscaras, as tais que a Direção-Geral da Saúde diz não servirem para nada.

Há muitos anos que acredito que os maiores problemas do nosso tempo, em Portugal e em muitos outros países, como, aliás, na gestão da União Europeia, resulta de as lideranças não terem a preparação necessária para compreenderem a enorme rapidez das mudanças a que estamos sujeitos, em que a capacidade de previsão joga um papel determinante na governação das empresas e dos povos. Em Portugal, nomeadamente a actual geração de governantes do PS privilegia o curto prazo e não mostra a capacidade de previsão do futuro que o nosso tempo impõe, mesmo para o tempo mais próximo, razão por que há duas décadas enfrentamos sucessivas adversidades em relação às mudanças e às frequentes surpresas que são uma característica das sociedades modernas. Em Portugal e com este Governo, a prática do curto prazo tornou-se uma forma de sobrevivência política, apoiada na cedência aos partidos da geringonça e aos sectores mais corporativos da sociedade, e na completa ausência de ideias quanto ao futuro.

Felizmente, a covid-19 está a mostrar do que os portugueses são capazes e por todo o país surgem as iniciativas mais variadas de cidadãos, de empresas e de instituições, mostrando que não dormimos em tempos de dificuldade. Empresas e instituições da sociedade estão, ainda que tarde, a produzir máscaras, viseiras, óculos, batas e mesmo kits para testes. Algumas autarquias em crise, como no caso do Porto e de Ovar, tomaram a crise nas suas próprias mãos, desesperadas por verem morrer pessoas amontoadas nos lares, sem testes e sem saber durante dias o que fazer com os doentes – quando seria fácil requisitar hotéis com quartos individuais para acolher os idosos não infectados e transferir com rapidez os doentes para os serviços de saúde. O que está a ser feito a conta-gotas é esperar que passe e não comprometa o partido do Governo.

Todos sabemos agora que a economia mundial irá sofrer uma crise profunda, ainda que não se conheça toda a sua dimensão. Trata-se de um enorme problema, mas também uma oportunidade de fazer o que é justo: acabar com os paraísos fiscais, que anualmente roubam milhares de milhões de euros aos orçamentos dos Estados, com o objectivo de financiar a recuperação, dando a oportunidade aos donos do dinheiro de serem eles a fazer os investimentos e a criar os empregos, ou que sejam os Estados a fazê-lo.

Em 2017, escrevi ao nosso conhecido secretário-geral das Nações Unidas a explicar a forma simples como esta operação poderia ser feita: fixando um prazo para o retorno do dinheiro aos países de origem e alterando posteriormente a denominação de todas as moedas existentes no planeta, deixando o dinheiro não retirado dos paraísos fiscais sem valor de troca. Recebi a resposta, dizendo que o secretário-geral não deve fazer propostas, o que já se sabia, mas, pessoalmente, esperaria que a visibilidade pública do secretário-geral, que se debate com tanta falta de dinheiro, pudesse lançar a ideia na comunicação social, permitindo que ganhasse força global.

Na carta, escrevi o seguinte: "Decidi por isso fazer-lhe três desafios que sei arriscados e sem nenhuma garantia de sucesso. De facto, o risco para a sua carreira, aí no topo do mundo, é enorme, mas esse risco existe sempre, e também para que serve uma posição como a sua se limitada ao previsível e ao óbvio?" No final da carta, escrevi: "Sei disso, mas por isso mesmo vale a pena a iniciativa de colocar estes três desafios na agenda da política mundial, por quem tem a visibilidade pública suficiente para o fazer. Muitos dos grandes avanços civilizacionais não tinham no início melhores condições de sucesso. Por outro lado, a alternativa dos pequenos passos já foi procurada por outros e certamente terá continuidade no futuro. O problema é que com a aceleração do tempo tecnológico, político e económico, ficaremos cada vez mais longe de uma sociedade que possa sobreviver em boas condições".

Infelizmente, António Guterres, apesar de todas as suas muitas qualidades, não é o único a ter medo do futuro e a reagir apenas e tarde às dificuldades do presente.