A triagem da pandemia


A triagem da pandemia destapou a realidade, com as suas fragilidades, que devem ser incorporadas no discurso político em vez de serem efabuladas em declarações de perfeição da resposta e dos recursos.


Não paramos. Não temos tempo. Não olhamos. Não damos atenção. Pairamos sobre as realidades, com sofreguidão, com ligeireza determinada pelos resultados, e como se não houvesse amanhã. E, de repente, tudo muda. Ouvíamos de terceiros, acometidos por desafios pessoais de saúde ou de outra ordem, da importância de reorganizarmos as prioridades, as atenções e os sentidos de vida, mas é preciso irromper o maior desafio de saúde publica de uma geração para percebermos a importância da triagem.

Sim, além da triagem que determina a diferença entre o contaminado e o não infetado, através dos testes que escasseiam aqui como em quase todas as latitudes europeias com similar intensidade do surto, a pandemia arrebata-nos nos riscos, nos comportamentos e nas prioridades.

Ouvimos há décadas reivindicações de atenção, de relevância e de fragilidades operacionais, mas as prioridades eram sempre outras, as dos ciclos eleitorais, as dos credores, as das novas tendências e tantas outras razões que agora se comprova serem insustentáveis.

Ouvimos há décadas, com maiores ou menores induções de grandes correntes ideológicas, filosóficas, políticas ou económicas, reiteradas discussões sobre quais devem ser as funções do Estado.

Ouvimos tantas coisas que agora nos servem de muito pouco, a par de outras que foram feitas e que se revelam decisivas para enfrentar a pandemia e o pós-pandemia.

Apesar dos sinais, das evidências e das reivindicações, a verdade é que não se deu a devida atenção a todos os que estão na primeira linha do combate à pandemia da covid-19. Num tempo global, em que as oportunidades alternam com as ameaças, a pandemia acaba por fazer uma triagem de quais devem ser as prioridades e as funções do Estado como entidade responsável pela gestão de uma comunidade e de um território. Tudo o que subsiste à ordem do “fique em casa” tem de ser prioritário na atenção e na alocação de recursos em tempo normal, porque são vitais em registo de emergência. Tudo o que se impõe neste tempo de pandemia, como a convergência de vontades, de rotinas, de civismo e de ação conjunta tem de ser parte do quotidiano, além dos pequenos poderes, das burocracias e das quintinhas.

Em boa parte, quem está na primeira linha do combate à pandemia ou na manutenção dos fluxos vitais para a vida individual são os deserdados da nossa atenção e da dos poderes ao longo de décadas. Não fizemos tudo para responder às suas necessidades, mas somos agora credores de uma resposta que tem de ser preservada durante a tormenta e valorizada no pós-pandemia. A não ser assim, em Portugal como na Europa ou no resto do mundo, continuaremos a estar sujeitos às consequências extremas e letais das nossas prioridades e ações individuais e comunitárias, sejam elas climáticas, pandémicas ou digitais.

É certo que muitas das questões que nos podem fustigar são globais mas, se não acautelarmos mínimos de preparação e resiliência para a atividade corrente, nunca estaremos preparados para a emergência ou para os fenómenos extremos. Como, no plano internacional, apesar de algumas boas intenções, prolifera o egoísmo nacionalista, a estupidez das lideranças e o que de pior pode existir na natureza humana, não será de esperar grande coisa.

Espera-se que sejamos seres inteligentes, que aprendem com os erros e devem saber estar atentos às realidades, aos riscos e às tendências, acautelando o essencial para o nosso perfil civilizacional.

É e será sempre normal contar com elementos disruptivos de ganância, de oportunismo ou de afirmação negativa de identidade, mas é fundamental não hesitar nas lições que emergem da triagem de funções essenciais que devem ser lideradas pelo Estado, podendo não ser este a concretizá-las integralmente.

A triagem da pandemia destapou a realidade, com as suas fragilidades, que devem ser incorporadas no discurso político em vez de serem efabuladas em declarações de perfeição da resposta e dos recursos. Há falhas, há debilidades e está-se a trabalhar para as minorar. Não há nenhum país, em democracia, que as tenha resolvido, mas tem de haver vontade, mobilização e determinação para responder aos desafios da triagem e da pandemia.

O importante é não ter heróis agora, para depois permitir que se esvaia a atenção e a ação consequente. É não fazer o que se fez com anteriores pandemias ou com a emergência da prioridade ao interior, na sequência dos incêndios florestais.

Houve um tempo em que a habilidade política, os humores ou os estados de alma podiam ditar os impulsos de governação ou das convergências internacionais. Não é este tempo atual, em que a velocidade da propagação do vírus é muito superior ao processo de decisão ou em que a digitalização acelerou tudo, para o bem e para o mal.

Estamos a enfrentar um enorme desafio de saúde pública. Infelizmente, nada será como antes. Por vontade própria ou por imposição alheia, existiram mudanças e, provavelmente, divergentes dos padrões e ritmos de vida que tínhamos.

Agora é tempo de reconfigurar, responder ao desafio da emergência e ficar em casa, mas a triagem da pandemia vai impor-se como uma marca de água, para quem decide, para quem comunica e para quem vive.

O pior ainda está para vir. Fiquem em casa.

 

NOTAS FINAIS

CARROÇA À FRENTE DOS BOIS Não se sabe quando é o pico da pandemia, não se sabe quando acaba, mas já se apontam datas para a retoma presencial ou televisiva das aulas. Como não vejo a discussão em Itália ou em Espanha, em sucessivas renovações de medidas cada vez mais duras, estes carrosséis emocionais não contribuem em nada para se viver um dia de cada vez, em casa.

A ESPERANÇA É A ÚLTIMA A MORRER No meio das imperfeições, da exaustação de muitos dos que estão na primeira linha da resposta, da resiliência de quem assegura bens e serviços essenciais e da sustentada permanência caseira, com o contributo de cada um vamos conseguir. Honrar quem perdemos e regressar aos novos normais.

 

Escreve à segunda-feira


A triagem da pandemia


A triagem da pandemia destapou a realidade, com as suas fragilidades, que devem ser incorporadas no discurso político em vez de serem efabuladas em declarações de perfeição da resposta e dos recursos.


Não paramos. Não temos tempo. Não olhamos. Não damos atenção. Pairamos sobre as realidades, com sofreguidão, com ligeireza determinada pelos resultados, e como se não houvesse amanhã. E, de repente, tudo muda. Ouvíamos de terceiros, acometidos por desafios pessoais de saúde ou de outra ordem, da importância de reorganizarmos as prioridades, as atenções e os sentidos de vida, mas é preciso irromper o maior desafio de saúde publica de uma geração para percebermos a importância da triagem.

Sim, além da triagem que determina a diferença entre o contaminado e o não infetado, através dos testes que escasseiam aqui como em quase todas as latitudes europeias com similar intensidade do surto, a pandemia arrebata-nos nos riscos, nos comportamentos e nas prioridades.

Ouvimos há décadas reivindicações de atenção, de relevância e de fragilidades operacionais, mas as prioridades eram sempre outras, as dos ciclos eleitorais, as dos credores, as das novas tendências e tantas outras razões que agora se comprova serem insustentáveis.

Ouvimos há décadas, com maiores ou menores induções de grandes correntes ideológicas, filosóficas, políticas ou económicas, reiteradas discussões sobre quais devem ser as funções do Estado.

Ouvimos tantas coisas que agora nos servem de muito pouco, a par de outras que foram feitas e que se revelam decisivas para enfrentar a pandemia e o pós-pandemia.

Apesar dos sinais, das evidências e das reivindicações, a verdade é que não se deu a devida atenção a todos os que estão na primeira linha do combate à pandemia da covid-19. Num tempo global, em que as oportunidades alternam com as ameaças, a pandemia acaba por fazer uma triagem de quais devem ser as prioridades e as funções do Estado como entidade responsável pela gestão de uma comunidade e de um território. Tudo o que subsiste à ordem do “fique em casa” tem de ser prioritário na atenção e na alocação de recursos em tempo normal, porque são vitais em registo de emergência. Tudo o que se impõe neste tempo de pandemia, como a convergência de vontades, de rotinas, de civismo e de ação conjunta tem de ser parte do quotidiano, além dos pequenos poderes, das burocracias e das quintinhas.

Em boa parte, quem está na primeira linha do combate à pandemia ou na manutenção dos fluxos vitais para a vida individual são os deserdados da nossa atenção e da dos poderes ao longo de décadas. Não fizemos tudo para responder às suas necessidades, mas somos agora credores de uma resposta que tem de ser preservada durante a tormenta e valorizada no pós-pandemia. A não ser assim, em Portugal como na Europa ou no resto do mundo, continuaremos a estar sujeitos às consequências extremas e letais das nossas prioridades e ações individuais e comunitárias, sejam elas climáticas, pandémicas ou digitais.

É certo que muitas das questões que nos podem fustigar são globais mas, se não acautelarmos mínimos de preparação e resiliência para a atividade corrente, nunca estaremos preparados para a emergência ou para os fenómenos extremos. Como, no plano internacional, apesar de algumas boas intenções, prolifera o egoísmo nacionalista, a estupidez das lideranças e o que de pior pode existir na natureza humana, não será de esperar grande coisa.

Espera-se que sejamos seres inteligentes, que aprendem com os erros e devem saber estar atentos às realidades, aos riscos e às tendências, acautelando o essencial para o nosso perfil civilizacional.

É e será sempre normal contar com elementos disruptivos de ganância, de oportunismo ou de afirmação negativa de identidade, mas é fundamental não hesitar nas lições que emergem da triagem de funções essenciais que devem ser lideradas pelo Estado, podendo não ser este a concretizá-las integralmente.

A triagem da pandemia destapou a realidade, com as suas fragilidades, que devem ser incorporadas no discurso político em vez de serem efabuladas em declarações de perfeição da resposta e dos recursos. Há falhas, há debilidades e está-se a trabalhar para as minorar. Não há nenhum país, em democracia, que as tenha resolvido, mas tem de haver vontade, mobilização e determinação para responder aos desafios da triagem e da pandemia.

O importante é não ter heróis agora, para depois permitir que se esvaia a atenção e a ação consequente. É não fazer o que se fez com anteriores pandemias ou com a emergência da prioridade ao interior, na sequência dos incêndios florestais.

Houve um tempo em que a habilidade política, os humores ou os estados de alma podiam ditar os impulsos de governação ou das convergências internacionais. Não é este tempo atual, em que a velocidade da propagação do vírus é muito superior ao processo de decisão ou em que a digitalização acelerou tudo, para o bem e para o mal.

Estamos a enfrentar um enorme desafio de saúde pública. Infelizmente, nada será como antes. Por vontade própria ou por imposição alheia, existiram mudanças e, provavelmente, divergentes dos padrões e ritmos de vida que tínhamos.

Agora é tempo de reconfigurar, responder ao desafio da emergência e ficar em casa, mas a triagem da pandemia vai impor-se como uma marca de água, para quem decide, para quem comunica e para quem vive.

O pior ainda está para vir. Fiquem em casa.

 

NOTAS FINAIS

CARROÇA À FRENTE DOS BOIS Não se sabe quando é o pico da pandemia, não se sabe quando acaba, mas já se apontam datas para a retoma presencial ou televisiva das aulas. Como não vejo a discussão em Itália ou em Espanha, em sucessivas renovações de medidas cada vez mais duras, estes carrosséis emocionais não contribuem em nada para se viver um dia de cada vez, em casa.

A ESPERANÇA É A ÚLTIMA A MORRER No meio das imperfeições, da exaustação de muitos dos que estão na primeira linha da resposta, da resiliência de quem assegura bens e serviços essenciais e da sustentada permanência caseira, com o contributo de cada um vamos conseguir. Honrar quem perdemos e regressar aos novos normais.

 

Escreve à segunda-feira