Covid-19.  Um mundo onde ninguém se entende

Covid-19. Um mundo onde ninguém se entende


Cada país escolhe o seu critério de contagem dos mortos pelo coronavírus. Por isso, as contas são díspares. Entretanto, a Alemanha prepara-se para passar “certificados de imunidade” a quem criou anticorpos.


Todos os dias o coração salta-nos para a boca com o número de mortes e de casos confirmados com covid-19 um pouco por todo o mundo. Com mais de um mês de penetração do vírus na Europa, começamos a perceber que não podemos confiar nos registos que nos são apresentados diariamente – no mesmo local, à mesma hora – pelos Governos dos países europeus. Cada um tem a sua forma de contar o número de infeções e das fatalidades. E nenhum o faz bem, revela o El País.

Por exemplo, a França contabiliza apenas aqueles que morrem nos hospitais; Espanha não regista as fatalidades nos lares sem que tenham sido realizados testes (segundo a contagem do El País, morreram mais de 300 pessoas nos lares em todo o país, até à última quinta-feira); o Reino Unido só passou a considerar a covid-19 como uma causa de morte a partir do dia 5 deste mês; Itália inclui no registo das vítimas do coronavírus todos os pacientes que testaram positivo e que morreram, independentemente dos outros aspetos do seu historial médico.

Diferenças de contagem que levam, por si só e sem contar com outros fatores, a que as taxas de mortalidade causadas pelo novo coronavírus não sejam fiáveis. Acresce, assim, o problema de serem conhecidas as infeções de apenas uma parte reduzida da população: a percentagem de mortes torna-se muito superior em relação ao número total, explicou Ildefonso Hernández, porta-voz da Sociedade Espanhola da Saúde Pública, ao diário espanhol – Espanha tem sofrido deste problema por estar desprovida da capacidade de testar eficazmente os seus pacientes.

Certificados de imunidade A Alemanha tem passado pelos cordelinhos da chuva em relação ao número de mortes causadas pela covid-19, sendo vista como um dos exemplos de combate à epidemia, em comparação com os seus vizinhos europeus. Os investigadores alemães estão a planear introduzir uma medida que passa por emitir “certificados de imunidade” aos cidadãos que tenham criado anticorpos ao vírus, revelou a Der Spiegel.

De acordo com a informação obtida pela revista alemã, está-se a preparar um grande estudo na Alemanha para se investigar quantas pessoas já se tornaram imunes à covid-19, depois de infetadas. O estudo em questão está a ser coordenado pelo epidemiologista Gérard Krause do Centro Helmhotz para a Investigação de Doenças Infecciosas, pelo Centro Alemão para as Doenças Infecciosas e pelos serviços de doação de sangue e pelo Instituto de Saúde NAKO. O Instituto Robert Koch e o Instituto de Virologia, em Berlim, também estão envolvidos neste “esforço de guerra”.

A intenção é testar cerca de 100 mil pessoas de uma só vez e que os anticorpos dos analisados indiquem quem foi infetado pelo vírus e recuperou. “Pode-se dar às pessoas imunes algo semelhante a um certificado de vacina que permitiriam exceções aos limites da sua atividade”, disse Krause ao Der Spiegel. Os dados recolhidos, depois, serão utilizados pelas autoridades para ir introduzindo medidas de suavização do confinamento e, de forma segura, abrir as portas para permitir as pessoas a voltarem ao trabalho. De momento, na Alemanha, todas as atividades não essenciais – bares, restaurantes, escolas – estão encerradas e os ajuntamentos (exceção para as famílias e colegas de casa) de mais de duas pessoas estão proibidos.

Os números chineses da discórdia O epicentro da pandemia deslocou-se para a Europa e Pequim aproveitou para se posar como exemplo mor de combate ao novo coronavírus na arena internacional. Mas os seu registos declarados podem não estar de acordo com os critérios de rigor que se impõem neste momento.

A China implementou um sistema de contagem de doenças infecciosas após a crise da epidemia SARS, em 2002, que, de acordo com os seus os responsáveis, era de classe mundial, explica o New York Times. Esse sistema permitira aos hospitais de todo o país introduzir os detalhes de cada paciente para que especialistas em Pequim identificassem rapidamente qualquer indício de surto, antes que o contágio se alastrasse incontrolavelmente. Falhou.

Quando os médicos de Wuhan, onde se pensa que a pandemia se originou, começaram a tratar pacientes com uma pneumonia misteriosa, em dezembro, essa partilha de informação devia ter sido automática, diz o New York Times. No entanto, devido à aversão política das autoridades regionais de partilhar más notícias com o Governo central, essa informação foi retida. As autoridades centrais, assim, não tiveram conhecimento do vírus através desse sistema, mas sim por denunciantes anónimos: enviaram dois documentos internos a alertar para o perigo da epidemia.

Mas mesmo depois de Pequim se envolver mais diretamente, as autoridades locais estabeleceram critérios estreitos de contagem de casos confirmados, deixando informação que poderia ter dados pistas que o vírus se estava a alastrar entre humanos. Segundo o diário nova-iorquino, aos hospitais foi ordenado que se contasse apenas pacientes com conexão conhecida com a fonte do surto, o mercado de marisco em Wuhan, na província de Hubei. Além do facto de que os médicos tiveram que confirmar os casos com os burocratas, antes destes serem relatados às cúpulas.

Caso medidas mais agressivas tivessem sido tomadas, uma semana antes destas terem sido anunciadas, em janeiro, o número de infeções poderia ter sido reduzido em dois terços, indica um estudo, cujo um dos autores é um especialista do Centro de Prevenção e Controlo de Doenças de Wuhan. Segundo outra análise, se Pequim tivesse tomado medidas para controlar o surto três semanas antes, isso poderia ter prevenido cerca de 95% dos casos no país.

“Desastre” Com a epidemia quase a atingir o pico em Espanha, segundo as autoridades, os profissionais de saúde e sindicatos denunciaram esta segunda-feira o “desastre” na feira de Ifema, Madrid, transformada em unidade hospitalar improvisada. Pouca segurança para os profissionais, sobrecarga de pacientes, doentes a menos de dois metros uns dos outros, e falta de recursos materiais são as queixas daqueles que estão na linha da frente do combate à epidemia na capital espanhola.

As mortes sem fim causadas pela covid-19 levou o Governo de Pedro Sanchéz a proibir as funerárias de subirem os preços dos seus serviços; o Executivo está, ainda, a estudar a transferência de pacientes para outras regiões para atenuar o impacto das unidades de cuidados intensivos mais afetadas pelo vírus. No total, segundo o Ministério da Saúde, Espanha contabiliza mais de 7 mil mortes e ultrapassou a China em número de infetados registados.

Já em Itália, continua-se a questionar a elevada taxa de mortalidade do coronavírus, quando o país ultrapassou as 10 mil mortes, a mais alta de todo o globo, e as 100 mil infeções. A resposta é dada através de um conjunto de fatores: os mais citados são a população envelhecida e o pequeno número de testes realizados. Segundo o médico Massimo Galli, chefe da unidade de infeções de um hospital em Milão, em declarações à CNN, diz que o número de casos confirmados não é “representativo de toda a população infetada”. A figura real é “muito maior”, assegura.

Uma realidade que aparenta ser transversal a muitos países. Mas de acordo com um estudo realizado pela Imperial College, Londres, nos 11 países mais afetados pelo coronavírus, as medidas tomadas evitaram um elevado número de mortes: entre 21 mil e 120 mil fatalidades.