As armadilhas da justiça


Enquanto o vírus Covid-19 se dissemina, a epidemia da falta de vergonha na justiça sinaliza um nível de consolidação que deveria suscitar um levantamento popular.


A justiça é um pilar fundamental de qualquer sociedade, sobretudo quando o modelo assenta na separação de poderes e na salvaguarda de direitos, liberdades e garantias para os cidadãos, no quadro de um Estado de direito democrático. Andámos demasiado para aqui chegar, para que o sistema judicial possa ter entorses tão grandes que coloquem em causa princípios de fiabilidade e de transparência, que nos colocam a todos à mercê do arbítrio ou de eventuais configurações que obedecem a critérios espúrios.

É certo que há na sociedade quem, por inadequado balanço entre direitos e deveres, procure, em cada normativo orientado para o indivíduo ou para o todo, formas de o contornar ou mitigar em função dos interesses particulares. São múltiplas as expressões cívicas de um défice de apego aos princípios e aos valores que conduzem a diversos posicionamentos pessoais perante o Estado, perante os outros e nos posicionamentos comunitários. Demasiados, se puderem não cumprir, não cumprem, sem qualquer rebate de consciência do contributo cívico individual e do compromisso com a comunidade.

É certo que as distorções, as perceções das realidades e as dinâmicas sociais apresentam amiúde perfis inaceitáveis para quem procura cumprir em todos os patamares, no âmbito do contrato social, gerando injustiças, profusos motivos de revolta e reiterados maus exemplos individuais e de posicionamento comunitário.

Enquanto o vírus Covid-19 se dissemina, a epidemia da falta de vergonha na justiça sinaliza um nível de consolidação que deveria suscitar um levantamento popular, dada a gravidade das suspeitas e o reiterado comportamento de diversos protagonistas. O que tem sido conhecido como preâmbulo de entorses no funcionamento não só é suscetível de implodir diversos processos judiciais como de lançar a dúvida estrutural no regular funcionamento do sistema. A justiça, que deixou consolidar a ideia de que é lenta, de que existe em função da condição financeira dos cidadãos e de que não funciona com a eficácia que os tempos modernos exigem, para que seja eficaz e dissuasora, está a empurrar os cidadãos para uma armadilha lesiva da confiança que restava.

Por culpa de quem devia cumprir e procura subterfúgios para faltar às suas obrigações individuais e comunitárias.

Por culpa de quem deveria assegurar que a árvore do mau funcionamento da justiça não se transformava na floresta que é cada vez mais evidente pelos sinais e casos emergentes.

Por culpa de quem é protagonista para administrar a justiça em nome da comunidade e coloca o ego acima da substância.

Por culpa de quem reiteradamente condena na praça pública quem deveria ter direito à presunção de inocência, determinando penas maiores que as judiciais nos tribunais da opinião pública e das redes sociais, onde a condenação perpétua há muito se instalou, quantas vezes sem fundamento.

Por exclusiva culpa desta gente estamos todos a ser empurrados para uma armadilha em que a única vítima vai ser o próprio sistema de justiça, por via da desconfiança, da opacidade e da ausência de rigor. Quando assistimos a uma versão judicial da corriqueira conversa masculina de que “a minha é maior que a tua”, projetada na concretização de uma vasta operação de buscas a clubes de futebol no dia em que se iniciava o debate instrutório da Operação Marquês, num autêntico duelo de egos pela prevalência no espaço mediático, dirá o cidadão comum que “estamos entregues à bicharada”.

E bem pode o senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça enunciar posições de força caso se confirmem as distorções ou verberar proclamações de enlameio de outras áreas da sociedade portuguesa (“ambiente conspurcado do futebol”), que o certo é que há muito existem suspeitas, há muito existe um corporativismo que só penaliza com grande pressão social e as tentações existentes dentro e fora do sistema exercitam-se há décadas como reminiscências do antigamente.

Os portugueses estão a ser encaminhados para uma armadilha da justiça em que nada é bom.

Ganha-se a perceção de que estamos expostos a arbítrios e a egos de quem intervém no funcionamento do sistema judicial, com esfumados compromissos com as dinâmicas normais de um Estado de direito democrático.

Ganha-se a convicção de que o sistema tem funcionamentos modelados em função de egos, da procura de garantias adquiridas de obtenção de determinados fins com os meios que aprouver, em função dos protagonistas no comando ou de turno.

Perde-se a confiança que resta no funcionamento e nos protagonistas do sistema judicial, logo, na justiça como pilar da organização de qualquer sociedade civilizada.

O inacreditável é que na ânsia dos egos, das entropias do funcionamento e da persistência das inconsistências, a destruição do que resta de confiança na justiça, onde certamente existirá excelência, rigor e profissionalismo, esteja a ser concretizada justamente por quem é protagonista do processo. Infelizmente, é expressão moderna do estado de espírito atribuído a Júlio César por ocasião da vinda dos romanos à Península Ibérica durante as Guerras Púnicas, “há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar”.

Com políticos que mudam leis em função do caso concreto e protagonistas judiciais que as aplicam em função dos egos e de entorses de conveniência, há uma convergência inaceitável de vontades para armadilhar o sistema judicial, pilar essencial de qualquer Estado democrático.

O problema é que a descrença no funcionamento do sistema abre portas a desesperados impulsos individuais e comunitários demasiado perigosos para a democracia. Se o juiz decide o momento de uma investigação em função do ofuscar do processo de um outro juiz, por que razão não pode o cidadão enveredar pelo olho por olho? É miserável, mas é o sinal que alguns protagonistas do sistema induzem para a sociedade.

Quem guarda o guarda? Quem salvaguarda os nossos direitos, liberdades e garantias?

 

NOTAS FINAIS

É injusto. A arrogância da posição cimeira e a azia do resultado não obtido fazem do treinador Conceição um must. Depois de, na antevisão da jornada, verberar uma graçola sobre os 100 minutos, é injusto que os seus 100 minutos (também os teve) não dessem para mais.

É justo. Se, no futebol, os resultados divergem do trabalho, nas finanças do Sport Lisboa e Benfica SAD, a colheita corresponde ao esforço. O resultado líquido do 1.o semestre do exercício de 2019/20 ascende a 104,2 milhões de euros, o que representa uma melhoria de 639,8% face aos 14,1 milhões de euros apresentados no período homólogo. Quanto contraste com os 51 854 milhões de prejuízo a norte…

Escreve à segunda-feira