Durante os últimos quatro anos, a União Europeia pagou à Turquia para fazer o trabalho sujo da Europa-fortaleza. Seis mil milhões de euros foram transferidos para o regime turco a troco da retenção em campos de concentração de todos os refugiados que tentam atravessar as fronteiras turcas para chegar à Grécia.
A expressão campos de concentração não é aleatória. Dentro deles vivem 3 milhões de refugiados que fogem da guerra e dos conflitos armados que se agravaram na região ao longo das últimas duas décadas. Vivem sujeitos a violência, agressões sexuais e subnutrição, em condições que testam todos os limites da dignidade humana. Vivem rodeados de muros e arame farpado, não para estarem protegidos da morte que os persegue, mas para que não possam fugir dela.
Enquanto isso, a sul, forças curdas aliadas às Forças Democráticas Sírias (SDF) perseguiram e expulsaram o Estado Islâmico de uma vasta área do nordeste da Síria. E estabeleceram o controlo sobre uma grande extensão da fronteira com a Turquia, onde são responsáveis por alguns dos campos de refugiados mais importantes da região, incluindo os campos de prisioneiros do Daesh. Só em al-Hol há 70 mil pessoas detidas, quase 90% mulheres e crianças, incluindo 11 mil estrangeiros.
Em outubro de 2017, os combatentes das SDF capturaram a “capital” do Estado Islâmico, Raca. Em março de 2019 anunciaram a “eliminação total” do “califado” do Estado Islâmico. A partir de outubro de 2019, Donald Trump anunciou a intenção de fazer recuar as suas tropas, o que deu carta-branca à Turquia para lançar ofensivas militares na fronteira com a Síria, atacando as forças curdas pelas costas e forçando dezenas de milhares de civis a fugirem das suas casas com receio de serem atingidos por tiros de artilharia e ataques aéreos.
A escalada do conflito e a emergência de nova crise humanitária na Síria era evidente mas, ainda assim, a Europa ficou passiva. Se seis mil milhões de euros chegavam para esconder milhões de vidas humanas atrás de quilómetros de arame farpado, porque não chegariam também para comprar o silêncio cúmplice dos líderes europeus?
E assim foi. Um pouco mais ruidoso foi Gérard Araud, o embaixador francês em Washington até junho passado, que deixou claro que nunca houve intenção de enfrentar os desvarios do regime de Erdogan: “Os curdos combateram contra o Daesh porque eram o seu inimigo. Trabalhámos em conjunto porque o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Fornecemos-lhes armamento e apoio aéreo. Estou convencido de que eles não tinham ilusões sobre um compromisso a longo prazo da nossa parte”.
Porque compromisso só havia um, uma transação comercial entre a União Europeia e a Turquia. Há quem não goste que se utilize estes termos, mas de que se trata, afinal, quando a União Europeia determina que o problema da crise dos refugiados é apenas uma questão de pagar o preço certo à Turquia? Quanto passa a valer a vida de cada homem, cada mulher, cada criança que foge à guerra?
Para o regime de Erdogan, não há dúvida de que se trata de um negócio. E por isso, depois de exigir o aumento do pagamento para a “manutenção” dos campos de contenção, decidiu utilizar a chantagem máxima contra a União Europeia. Foi assim que a Turquia ameaçou e, depois, abriu mesmo as suas fronteiras para deixar passar todos os refugiados que pretendem chegar à Grécia.
O Governo turco sabe que a maioria destes refugiados morrerá no mar, será abatido a tiro, devolvido ou amontoado num dos campos gregos. A Europa sabe que o crescimento da extrema-direita e da xenofobia está a levar a ataques a campos de refugiados na Grécia e que o Governo grego já anunciou que pretende suspender a concessão de asilo (contra o direito internacional). A União Europeia sabe que não há ninguém no mar para salvar esta gente do afogamento ou para a resgatar de uma morte à sede e à fome. Isso faz parte do contrato.
A primeira vítima do cumprimento da chantagem turca foi uma criança que morreu afogada ao largo da ilha grega de Lesbos. Qual é o preço dessa vida? Para a União Europeia, seis mil milhões de euros. Mas a Turquia já elevou a fasquia e quer apoio na ofensiva contra os curdos no território sírio e proteção europeia contra o regime de Damasco.
A União Europeia tinha a obrigação e a capacidade para desenvolver uma política de paz, proibindo a venda de armas para os conflitos do Médio Oriente e acolhendo os refugiados que fogem da guerra. Em vez disso, preferiu gastar seis mil milhões de dinheiro público em arame farpado e reforço bélico de um regime autoritário. Já estivemos todos mais longe de ser traficantes de refugiados.
Deputada do Bloco de Esquerda