Theo Boer é professor de Ética dos Cuidados de Saúde na Universidade Teológica Protestante em Groningen. Durante quase dez anos pertenceu a um dos comités de revisão dos casos de eutanásia no país, onde participou na análise de mais de 4000 processos, e tem vindo a desenvolver estudos sobre o tema. Admite que a eutanásia pode ser uma solução em casos excecionais, mas defende que a legalização deixa as portas abertas para aceitar cada vez mais casos – e está convicto de que o mesmo acontecerá em Portugal. Se há 20 anos foi a favor da descriminalização que tornaria a Holanda um caso de estudo, acredita que o balanço deve levar os países a evitar seguir o mesmo caminho. Em entrevista ao i, por email, diz que a eutanásia passou de um último recurso para uma “maneira padrão de morrer”.
Há 20 anos defendeu a descriminalização da eutanásia na Holanda. Qual era a sua visão e que tipo de discussão havia na altura entre médicos e Igreja, sendo especialista em teologia e ética?
A partir de meados da década de 1980 participei regularmente em debates com teológos e médicos. A atmosfera geral na minha igreja – a Holanda é um país protestante e sou membro da maior igreja protestante – era pró-eutanásia. Os meus tutores não eram exceção: sistematicamente desconstruíram todos os argumentos tradicionais contra a eutanásia e substituíram-nos por argumentos teológicos a favor. Alguns desses argumentos “pró” eram duvidosos, por exemplo a visão de que a eutanásia é aceitável porque, após a morte, continuamos vivos, ou a visão de que os seres humanos têm a liberdade de devolver o dom da vida ao seu Doador. Era crítico deste liberalismo mas ao longo dos anos fiquei convencido de que a lei holandesa da eutanásia era um compromisso seguro e responsável. Um dos motivos para a minha convicção foi o enorme apoio social à eutanásia, combinado com a presença frequente de sintomas intratáveis. Como protestante genuíno achei que era melhor trazer algo para a luz do dia e regulá-lo em vez de permitir que acontecesse em segredo. Estava errado. Trazê-lo para a luz do dia levou a uma procura sem precedentes.
Durante dez anos foi membro de um dos cinco comités de revisão de casos de eutanásia. O que faziam e quais eram as questões mais difíceis de avaliar?
Fui membro entre 2005 e 2014. Temos cinco comités para cinco regiões [na legislação holandesa, em vez de vários pareceres prévios como preveem os projetos de lei em Portugal, os médicos reportam os casos a estes comités para uma avaliação a posteriori]. Éramos três membros: um advogado que preside, um médico e eu como eticista. Revíamos cerca de 40 casos por mês, já depois de a eutanásia ter tido lugar. Os casos mais difíceis para mim eram aqueles em que achava que teria havido possibilidade para um tratamento com sucesso. Por vezes, médico e doente ficavam presos numa estrada em direção à eutanásia.
Pode dar exemplos?
Os casos mais difíceis que encontrei foi de doentes com uma esperança de vida maior mas que estavam determinados em ter acesso à eutanásia e recusavam discutir alternativas. Pense por exemplo num doente que desenvolve uma cegueira, que tem muitos amigos e familiares mas que diz “se não consigo ver, a vida não vale a pena”. Ou um doente com autismo cuja principal razão para o sofrimento era adaptar-se a novas situações. Em ambos os casos pensei: “Estamos a usar uma solução médica para um problema não médico”. Pensei que as pessoas envolvidas deveriam ter investido mais em formas de enfrentar aquelas questões.
Tem vindo a alertar nos últimos anos para o risco da “rampa deslizante”. Quando é que a sua perceção sobre a eutanásia começou a mudar?
No início os números permaneceram estáveis mas passados alguns anos começaram a aumentar e hoje são o triplo. Comecei a pensar: como é que é possível se as opções de cuidados paliativos melhoraram tanto? Para muitas pessoas, a eutanásia passou de último recurso para uma maneira padrão de morrer, um direito do doente, com um correspondente dever do lado do médico. Nunca foi essa a intenção da lei mas funcionou dessa maneira.
Foi a consequência mais inesperada ao longo destes
20 anos?
Não são 20 anos de experiência mas 35: a nossa primeira decisão governamental para tolerar e regular a eutanásia remonta a 1985. A maioria de nós no início dos anos 2000 pensou que a melhoria dos cuidados em final de vida (cuidados paliativos) iria reduzir a necessidade de eutanásia, mas aconteceu o contrário, os números triplicaram. Além disso, as razões para ter a eutanásia expandiram-se. No início era para doenças terminais. Agora cada vez mais diz respeito a doentes com uma esperança de vida de anos, alguns de décadas. A eutanásia passou de um último recurso para prevenir uma morte terrível para um último recurso para prevenir uma vida terrível. E o que vemos é que a eutanásia cada vez mais colide com o dever do Governo de prevenir o suicídio.
O acesso à eutanásia não pode prevenir casos de pessoas que colocam o fim à sua vida de forma violenta?
É um dos argumentos que se ouve repetidamente. Pode ser verdade a nível individual: um doente que tenha a possibilidade de eutanásia poderá abster-se de se matar ou mesmo deixar de procurar a morte. A nível nacional, no entanto, não é verdade. No período entre 2009 e 2019, em que a eutanásia se tornou disponível na Holanda para pessoas com depressão, Alzheimer, o número de suicídios violentos aumentou 35%. Nos países vizinhos o numero de suicídios manteve-se estável ou diminuiu. Na Alemanha, a taxa de suicídio diminuiu 10%. A minha explicação é que as discussões contínuas acerca da morte como solução em casos de sofrimento severo cria uma cultura de desespero e cinismo.
Os projetos de lei em discussão em Portugal restringem a morte assistida a doentes adultos com doenças incuráveis e fatais ou lesões definitivas e sofrimento duradouro e insuportável, uma abordagem bastante mais restritiva do que a holandesa, e ficam excluídas pessoas com anomalia psíquica e doença mental. Ainda assim tem vindo a alertar para que os países não sigam este caminho. Porquê?
Não se deixem seduzir. Não existe uma jurisdição no mundo onde a prática da eutanásia não se tenha expandido. O Canadá é um exemplo importante e trágico. Há cinco anos a eutanásia foi legalizada apenas para doentes terminais. Em setembro do ano passado, o Tribunal Superior da província de Quebeque decidiu que essa limitação é uma discriminação e determinou que a eutanásia deve estar disponível para qualquer pessoa em sofrimento insuportável. O Governo decidiu então que esta decisão se aplicaria a todas as províncias. Por isso, agora, apesar de todas as cautelas, a eutanásia ficará disponível para doentes psiquiátricos, doentes com demência, doentes idosos e doentes com patologia crónica. Houve alterações semelhantes nos EUA, na Bélgica e na Suíça. Mais uma vez: não se deixem seduzir. Os ativistas da eutanásia dirão que é uma questão de compaixão para com as pessoas que estão a morrer. Não conheço nenhuma sociedade de direito à morte que não propague totalmente o direito de qualquer indivíduo capaz a ter uma morte assistida. Nesta visão de longo prazo, a proposta de lei portuguesa é apenas um trampolim para uma maior liberalização. Dentro de cinco anos após a promulgação desta lei, verá processos judiciais a acusar o Governo de discriminação e paternalismo. Quem nega este automatismo é mal informado ou mal-intencionado.
Todos os projetos de lei em Portugal estabelecem que o pedido tem de ser reiterado várias vezes pelo doente e que terá de estar consciente no momento da morte, à exceção de uma das iniciativas que determina que o processo pode avançar se a decisão estiver expressa no testamento vital. Como funciona o processo na Holanda?
Na lei holandesa, decidimos que uma diretiva escrita pode substituir o pedido oral. Na minha leitura, era para doentes que, tendo iniciado os procedimentos para eutanásia e pedido ao médico para o fazer, ficassem inconscientes ou delirantes. O artigo legal evoluiu entretanto para que pessoas possam ser eutanasiadas com base de diretivas antecipadas de vontade feitas meses ou anos antes.
A lei mudou ou mudou a interpretação?
Os comités de revisão regionais, que são responsáveis pela interpretação da lei, determinaram em 2008 que a cláusula legal sobre as diretivas antecipadas também se aplica a pessoas em estado avançado de demência. É baseado na mesma lei, mas houve uma mudança de interpretação.
Como tem sido a reação entre os médicos?
A lei holandesa da eutanásia é uma lei feita por médicos, iniciada a pedido de médicos que nos anos 80 e 90 tinham doentes em sofrimento excruciante e não eram capazes de lhes dar alívio adequado. O que eles pediam era, em caso de emergência, quando estivermos encostados à parede, confiem em nós e não nos criminalizem. Muitos lamentam-no agora: alterou a relação médico-doente no sentido em que agora alguns doentes veem a eutanásia como um procedimento médico normal. Conheço muitos médicos que hoje recusam a eutanásia. A percentagem que diz que nunca fará eutanásia subiu de 11% em 2002 para 19% em 2006. Entre psiquiatras a percentagem é maior.
É um ponto de partida bastante distinto do português, em que há médicos a favor mas a Ordem se opõe à despenalização.
Diria que se os médicos estão contra, não vão por aí. Também é uma visão protestante: cada pessoa é responsável por si própria. Se um doente quer morrer de forma ativa, ajudem-nos a encontrar forma de o fazer sem a ajuda de um médico. Essa é a autonomia real.
Está a referir-se a suicídio assistido?
Não, a suicídio autónomo com meios que não sejam violentos e traumatizantes para os outros.
Um dos argumentos contra a despenalização da eutanásia em Portugal é a falta de cuidados paliativos. Como vê essa posição?
O nosso antigo ministro da Saúde, Els Borst, que avançou em 2001 com a legislação da eutanásia, admitiu-o uma vez: fizemos isto pela ordem contrária, primeiro legalizar a eutanásia e depois melhorar o nosso sistema de cuidados paliativos. Se em 1990 tivéssemos o nível de cuidados paliativos que temos hoje, penso que nunca teríamos legalizado a eutanásia. Pensar que, no ano 2020, os doentes devam solicitar a eutanásia por falta de cuidados paliativos é uma desgraça. Se a morte é uma alternativa mais barata aos cuidados paliativos, essa é uma das coisas mais tristes que podem acontecer num país civilizado.
Uma pessoa não poderá pedir a eutanásia por não ter cuidados paliativos. O que fazer em situações em que os cuidados paliativos não funcionam?
Se os cuidados paliativos não funcionam para todos os doentes, acho que a coisa certa a fazer é procurar maneiras de explicar por que não funcionam e aprender com isso. Se podemos colocar pessoas na Lua e enviar rovers para Marte, também poderemos encontrar novas maneiras de pôr as pessoas confortáveis.
Viu casos em que os doentes foram pressionados por familiares ou médicos?
Vi exemplos claros de pressão da família e de pressão por parte dos médicos e documentei-os; no entanto, os Comités de Revisão Regionais proibiram-me de dar detalhes e números, seria uma violação da confidencialidade. A boa notícia é que a eutanásia não se tornou um modelo de negócio. Um clínico geral (na Holanda) recebe 300€ por todo o procedimento. Uma exceção poderá ser a Clínica de Fim de Vida (hoje “Expertisecenter Euthanasia’”) que recebe cerca de 3000 € por cada eutanásia.
Um artigo recente no The Guardian dizia que hoje em dia um quarto das mortes na Holanda já são de alguma forma induzidas, quer os casos de eutanásia quer os casos de sedação paliativa, em que os doentes em estado terminal são colocados em coma mas não existe a intenção deliberada de matar. Apesar das questões que tem vindo a denunciar, morre-se de forma mais digna do que no passado?
Penso que em muitos casos tanto a eutanásia quanto a sedação paliativa podem ser maneiras dignas de morrer, especialmente quando comparadas com os leitos de morte excruciantes do passado, quando os doentes eram deixados a sufocar, a gritar pelas suas mortes. Mas não nos podemos esquecer que uma morte natural, com a ajuda de bons cuidados paliativos, é a mais digna de todas.
Estão a discutir a disponibilização de um comprimido letal a pessoas com mais de 70 anos. Vê condições para a medida avançar?
Embora durante algum tempo tenha havido uma maioria parlamentar para isso, agora acredito que não passará. Dois comités científicos governamentais separados, um em 2016 e outro este ano, concluíram que uma Lei da Vida Completa é imprudente. Seria inseguro, há pouca necessidade prática, minaria a atual Lei da Eutanásia, minaria os programas de prevenção ao suicídio e seria uma discriminação de idosos e pessoas vulneráveis. Ainda assim, o facto de estarmos a discutir essa lei há pelo menos cinco anos é uma indicação de que uma lei de eutanásia levará a práticas novas e mais liberais.
Qual seria neste momento da discussão a sua recomendação para Portugal?
Diria não legalizem a eutanásia de todo. Deixem ao critério dos médicos disponibilizar o alívio adequado. Se esse alívio, por exemplo através de doses elevadas de morfina, implicar que, em casos excecionais, os doentes morram mais cedo, que seja assim. A legalização da eutanásia teve como efeito profanar a profissão de médico: o seu trabalho tornou-se parte de uma agenda social liberal. Penso que a posição deve ser confiar nos médicos e não os perseguir, pois agem nas zonas cinzentas da vida. Mas assim que se legaliza a eutanásia, é como se estivesse a colocar essa ação excecional na montra de uma loja: ‘Olhe, esta é uma das suas opções legais!’ Os exemplos holandeses e belgas são a prova de que a oferta criará procura. Não há país no mundo em que legalizar a eutanásia tenha sido o fim de uma discussão. Em todos os países, foi o início de novas discussões. Se Portugal legalizar a eutanásia, basta olhar para os Países Baixos para saber onde vão estar daqui a vinte anos.
Deixar essa decisão ao critério dos médicos não aumenta o risco de desigualdades?
Legalizar a eutanásia não reduz a desigualdade. Mesmo na Holanda liberal, um médico realiza a eutanásia sempre, outro nunca, e um terceiro e um quarto fazem-no cada um em condições diferentes. Se deseja abandonar a desigualdade, a coisa certa a fazer é tornar a eutanásia um ‘procedimento médico normal’ a que todos têm direito. Mas isso seria prejudicial para a ética médica.
Em que casos é a favor da eutanásia?
Em 2020, num país civilizado, penso que a eutanásia não é necessária para prevenir mortes terríveis. Nas exceções em que os cuidados paliativos não são eficazes, podemos querer pôr fim à vida de maneira direta e intencional. Mas isso é uma tragédia e penso que é um erro acharmos que uma tragédia pode ser legalmente regulamentada. No momento em que regulamos uma forma de tragédia, outras tragédias exigirão uma nova liberalização da lei. O que mais me preocupa é que a eutanásia começou a minar a nossa determinação de lidar com as nossas dificuldades. Em vez de dar esperança, enviamos o sinal de que, para alguns doentes, é melhor deixar de existir.
Existe no limite o argumento individual: enquanto sociedade, porque é que havemos de negar o último pedido de alguém e que não obriga ninguém a fazer o mesmo.
A liberdade de alguns afetará as liberdades de outros. A eutanásia não é apenas uma decisão individual. Se, num barco, uma pessoa que vai à frente saltar, todas as outras serão afetadas. A eutanásia começa com as liberdades de alguns, mas em breve estabelecerá um padrão para outros. Temos estado a fazer essa investigação e, em alguns municípios holandeses, a eutanásia está a tornar-se uma das causas de morte mais importantes.