Hoje voto sim ao direito a morrer com dignidade


Ao contrário do que podem apregoar muitos dos que anunciam a chegada do apocalipse, hoje decidimos a defesa do direito à vida e nada mais do que isso.


Hoje espero fazer parte de uma maioria de deputados e deputadas que vai aprovar a despenalização da morte assistida. Para isso basta que um ou vários dos cinco projetos de lei em debate sejam aprovados.

Se isso acontecer, hoje terá sido dado um passo histórico no nosso país no sentido da liberdade e da humanidade. Porque o direito a uma morte digna é uma extensão do direito humano à vida e à autodeterminação, e não cabe ao Estado, nem a uma confissão religiosa, nem a um partido a decisão de, só porque alguém não tem autoridade sobre o seu corpo, negar-lhe também a autoridade sobre a sua vida.

Se isso acontecer, dormirei mais tranquila. Porque não quero que no futuro a vida me seja imposta como um castigo, uma pena perpétua por um crime que não cometi. Porque no meu entendimento de humanidade não cabe o egoísmo de, para capricho das minhas convicções, querer manter alguém num sofrimento tão atroz que só deseja morrer.

Ao contrário do que podem apregoar muitos dos que anunciam a chegada do apocalipse, hoje decidimos a defesa do direito à vida e nada mais do que isso.

Hoje não se discute a rede de cuidados paliativos do país. Não porque ela não seja importante, mas porque não podemos deixar que um debate tão sério como este esteja sujeito a tão mesquinha manipulação. Os cuidados paliativos têm de estar disponíveis para todos os que deles necessitam, queiram ou não aceder à morte assistida.

Nunca houve – nem poderá haver – uma contradição entre o direito a uma morte digna e o direito a cuidados paliativos. Prova disso são os inúmeros exemplos de pessoas a quem o acesso aos melhores cuidados paliativos só confirmou a decisão sobre a morte assistida. Prova disso é que nem a melhor rede de cuidados paliativos mudaria a opinião daqueles que agora são contra o direito a morrer com dignidade.

Há coisas que nenhum medicamento, nenhum afeto pode confortar. O sofrimento não tem os limites que julgamos conhecer. Uma enfermeira chamada Carmen Garcia escreveu por estes dias nas suas redes: “Atrás das secretárias ou dos ecrãs dos computadores, lá onde não chega o cheiro da morte e onde não se ouvem os gritos das dores que a morfina não resolve, é fácil opinar. É fácil falar bonito sobre as escolhas dos outros quando temos umas pernas que nos obedecem, quando a incontinência é para nós apenas uma palavra usada nos anúncios das fraldas e quando a pior dor que já sentimos se resolveu com tramal. Difícil é estar lá, dar a mão a essas pessoas e dizer-lhes que, mesmo contra a sua vontade, terão de continuar a sofrer. Porque alguém decidiu sobre elas e sobre a sua própria vida. (…) É, eu também tinha opiniões muito romanceadas antigamente. Mas acho que as vomitei todas em Fernão Ferro, na casa da doente de 41 anos que apodrecia numa cama e que repetia incessantemente duas palavras. ‘Deixem-me morrer’”.

Referendar o direito daquela mulher a morrer é um ato de desumanidade atroz. Querer julgar o seu sofrimento é uma tremenda hipocrisia. O debate está feito, andamos a fazê-lo há 20 anos. O que se vota hoje são os projetos que definem e regulam as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível.

Hoje voto sim porque não abdico de defender o que nos torna humanos.

 

Deputada do Bloco de Esquerda