Se os prognósticos não falharem, o Parlamento pode vir a aprovar hoje, na generalidade, a despenalização da morte assistida, abrindo-se um debate na especialidade que não será fácil – a começar na pressão para um referendo (com o deputado do PSD Pedro Rodrigues a preparar uma iniciativa nesse sentido) e na recolha de assinaturas para uma iniciativa popular de consulta que já tem entre 38 mil e 40 mil assinaturas (faltam 20 mil).
Pelo caminho, gerou-se ontem uma guerra no PSD pelo referendo. A direção considera que “não tem sentido de oportunidade”, Pedro Rodrigues deve insistir e o caso pode chegar ao conselho nacional do partido.
Com liberdade de voto tanto no PS como no PSD, as contas fazem-se à unha porque haverá hoje votação nominal (contagem um por um dos parlamentares). Entre os socialistas haverá cerca de dez nomes que não votarão a favor da proposta do PS (abstêm-se ou votam contra). É o caso de Joaquim Barreto, que se absterá hoje (já informou a direção da bancada), e de Pedro Cegonho, que votará contra. O deputado do PS e ex-presidente da Associação Nacional de Freguesias (Anafre) explicou ao i os motivos da sua decisão, sublinhando que parte para esta discussão com dúvidas. Mas argumenta que o seu sentido de voto resulta de três ordens de razões. “Parto para esta análise sempre com uma posição de dúvida. Reconheço que não tenho certezas absolutas sobre estes assuntos, mas tenho estas três preocupações. Primeiro, há de facto um problema constitucional na minha visão, idêntica àquilo que o professor Jorge Miranda tem dito. Em segundo lugar, nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, há legislações iniciais que são extremamente cuidadosas, que fecham os casos em circunstâncias muito excecionais, mas ao longo do tempo têm vindo a ceder nessas condições de excecionalidade. Por último lugar, acredito no vertiginoso progresso contínuo da ciência, da medicina, e acho que tudo o que a medicina nos pode providenciar a cada um não está ainda disponível a todos”, declarou o parlamentar ao i.
O referendo, contudo, também não é solução: “Não é uma questão de sim ou não e por isso é que não concordo com esta questão de se levar a referendo. É impensável que uma questão tão complexa como esta seja sujeita a uma resposta de sim ou não”, acrescentou Cegonho.
Outros deputados, como o secretário-geral adjunto do PS, José Luís Carneiro, ou Ascenso Simões votarão contra. As contas no PS estão a ser feitas de forma a garantir a aprovação da despenalização e só Carlos Pereira estará fora em missão parlamentar.
Rio vota a favor, maioria não
No PSD haverá uma maioria também a votar contra, mas o líder do partido, Rui Rio, votará a favor. Também o primeiro vice da bancada, Adão Silva, disse ao i que “vai votar a favor do projeto do Partido Socialista e abster-se nos demais”. Haverá mais casos de votos a favor nalguns projetos e abstenções noutros (como os dos deputado Cristóvão Norte, Duarte Marques, Hugo Carvalho, Sofia Matos, André Coelho Lima) e a dificuldade será mesmo cruzar todos os votos para fazer a soma: a favor, abstenção ou contra.
As expetativas de quem é a favor é que estejam garantidos pelo menos 116 votos (há dois anos, o texto do PS teve 110 contra 115). A aprovação falhou por cinco deputados.
No PSD, o caso do referendo pode mesmo constituir o primeiro momento pós-congresso em que a tensão interna regressa ao partido. A direção social-democrata fez saber que a proposta de referendo (que está a ser trabalhada pelos deputados Pedro Rodrigues e Pedro Pinto, entre outros) era feita à sua revelia. Entretanto, Pedro Pinto garantiu ao i que a decisão sobre o referendo só pode ser tomada pela maioria da bancada. “Não faz sentido nenhum de outra maneira”, acrescentou, prometendo que o resultado dessa reflexão será entregue e discutido com a direção da bancada.
A Lusa tinha avançado que outros deputados, como Cristóvão Norte, Sandra Pereira e Carlos Silva, iriam apoiar a iniciativa de referendo, impulsionada por Pedro Rodrigues. Mas já fizeram saber que não a integram.
Adão Silva avisa que o “que se pede aos deputados do PSD é que deem livre expressão – sublinho livre –, livre expressão aos ditames da sua consciência. Quanto ao mais, não tem sentido de oportunidade neste momento”.
Do lado de quem defende a despenalização da eutanásia está o deputado do Bloco de Esquerda José Manuel Pureza. Em declarações ao i, o parlamentar diz que “a partir do momento em que as pessoas que estão em fim de vida sentem como uma violência, uma perda da dignidade que se impõem a si próprias – nesse sentido, entendemos nós que em circunstâncias extremas, que são aquelas que prevemos no nosso projeto de lei –, se deve deixar de punir o profissional de saúde que entende auxiliar esta pessoa com pena de prisão de até três anos. O raciocínio de base é este”.
O papel de Belém
No final, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, terá um papel decisivo. Católico assumido, o Presidente enfrentará uma das decisões mais difíceis do seu mandato. E pode ser tentado a um veto político ou ao envio do diploma (que for aprovado na AR) para o Tribunal Constitucional. Contudo, José Manuel Pureza recorda ao i as declarações que Marcelo proferiu enquanto candidato e já Presidente eleito. “O que está claro, e esse é um compromisso solene de Marcelo Rebelo de Sousa, é que nunca será por razões das suas convicções pessoais subjetivas que impedirá que a lei prossiga o seu caminho”, recordou. E o Bloco de Esquerda registou.
Hoje vão a debate cinco projetos (de PS, BE, PAN, PEV e Iniciativa Liberal). Todos, apesar das diferenças, despenalizam a morte assistida a maiores de 18 anos, em situações de sofrimento extremo e de doença incurável. E sempre através de um médico. Os diplomas asseguram também a objeção de consciência para médicos e enfermeiros.