Na despenalização do aborto escreveu-se direito por linhas tortas


Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo, se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.


Apesar de ter aderido ao Bloco de Esquerda uns anos antes, considero que comecei a minha militância política no referendo pela legalização do aborto em 2007, através dos Jovens pelo SIM e do Movimento pelo SIM. Tenho muito orgulho nessa história, naquela campanha, e de ter contribuído para aquela vitória. Nunca esquecerei a noite de 11 de fevereiro de 2007 e os rostos emocionados de tantas mulheres que, ao contrário de mim, já tinham uma vida inteira de luta pelo direito ao aborto legal e seguro.

Esta semana comemoraram-se 13 anos da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal, a grande conquista do direito das mulheres à sua autodeterminação, à decisão sobre os seus corpos e a sua vida. Olhando hoje para os resultados, é até embaraçoso lembrar os mitos e apocalipses prometidos naquela altura pela campanha do não. Como disse Francisco George, ex-diretor-geral da Saúde, quando fez o balanço do seu mandato, “a [lei da] IVG foi um sucesso, um grande sucesso. Ao longo destes anos analisamos os registos e percebemos que, todos os anos, há menos interrupções do que no ano anterior”.

Não vou aqui recuperar todos os argumentos da campanha pelo sim. Espero não ter de o fazer durante o resto da minha vida. Espero que a nenhuma mulher nascida depois de mim seja imposto o regresso aos tempos obscuros da “perseguição social e judicial às mulheres, de interrogatórios e exames ginecológicos forçados, de processos criminais, de condenações, de abortos clandestinos em vãos de escada e mortes de mulheres por abortos inseguros”.(1)

Ainda assim, é bom lembrar que, até 2008, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Até 2007, a IVG era um crime punível com até três anos de prisão. Entre 1998 e 2007 foram investigados 223 crimes de aborto. Num país em que uma em cada sete mulheres afirmava já ter abortado, a hipocrisia maior era a daqueles que, como Marcelo Rebelo de Sousa, recusavam mudar a lei alegando que “é proibido mas pode-se fazer” e dessa forma condenavam milhares de mulheres à clandestinidade e aos abortos de vão de escada.

Desde 2012, mais nenhuma mulher morreu vítima de um aborto clandestino. Entre 2011 e 2018, as interrupções de gravidez por todos os motivos decresceram 24,2% e as realizadas apenas por opção da mulher até às dez semanas diminuíram 27,1%. As instituições europeias indicam que o número de interrupções de gravidez por 1000 nados-vivos em Portugal está abaixo da média europeia desde, pelo menos, 2015.

Claro que estes resultados seriam impossíveis se o Serviço Nacional de Saúde tivesse sido excluído do direito das mulheres a ter acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, como propunha a direita. A lei da IVG encaixou como uma luva nas políticas de planeamento familiar que já estavam a ser desenvolvidas e nos avanços da contraceção. A sua complementaridade salvou muitas vidas e pôs Portugal na linha da frente na promoção da saúde e direitos das mulheres.

Há paralelos que não podem ser estabelecidos. A história da legalização do aborto faz-se de décadas de cobardias de alguns e coragem de muitos. Cobardia, desde logo, do Partido Socialista, que empurrou para um primeiro referendo, em 1998, o que poderia ter aprovado no Parlamento, o que acabaria por provocar a necessidade de um segundo referendo para corrigir o primeiro e que, mesmo assim, não seria vinculativo. A lei do aborto acabaria finalmente por ser aprovada no Parlamento com os votos de PS, BE, PCP e PE. E coragem de muitas e muitos, incluindo a dos católicos que aceitaram dar a mão para acabar com a vergonha da perseguição às mulheres.

Treze anos depois, o país olha para a lei do aborto como se ela sempre tivesse existido, e já nem os partidos que se lhe opuseram, como o CDS, conseguem defender a criminalização das mulheres. A sociedade não aceitaria.

Mas o sucesso da lei do aborto em Portugal pode e deve levar-nos a outras reflexões sobre o país que queremos. Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo. Devemos perguntar se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Em qualquer circunstância, e apesar da vitória em 2007, mantenho o que muitos de nós sempre achámos: os referendos devem aplicar-se a matérias em que a vitória da maioria não se transforme numa ditadura moral sobre os direitos individuais, muito menos sobre direitos humanos. Há coisas que não são referendáveis. A morte assistida, como o aborto, é uma decisão que deve ser limitada apenas pela opção livre, informada, consciente e ponderada de cada um de nós. Submeter essa autodeterminação a uma moral que lhe é estranha seria o mesmo que condenar as consciências à clandestinidade. Elas não desaparecem, apenas continuam a existir em sofrimento.

 

Deputada do Bloco de Esquerda

(1) Intervenção da deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha sobre os 13 anos da despenalização do aborto


Na despenalização do aborto escreveu-se direito por linhas tortas


Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo, se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.


Apesar de ter aderido ao Bloco de Esquerda uns anos antes, considero que comecei a minha militância política no referendo pela legalização do aborto em 2007, através dos Jovens pelo SIM e do Movimento pelo SIM. Tenho muito orgulho nessa história, naquela campanha, e de ter contribuído para aquela vitória. Nunca esquecerei a noite de 11 de fevereiro de 2007 e os rostos emocionados de tantas mulheres que, ao contrário de mim, já tinham uma vida inteira de luta pelo direito ao aborto legal e seguro.

Esta semana comemoraram-se 13 anos da despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) em Portugal, a grande conquista do direito das mulheres à sua autodeterminação, à decisão sobre os seus corpos e a sua vida. Olhando hoje para os resultados, é até embaraçoso lembrar os mitos e apocalipses prometidos naquela altura pela campanha do não. Como disse Francisco George, ex-diretor-geral da Saúde, quando fez o balanço do seu mandato, “a [lei da] IVG foi um sucesso, um grande sucesso. Ao longo destes anos analisamos os registos e percebemos que, todos os anos, há menos interrupções do que no ano anterior”.

Não vou aqui recuperar todos os argumentos da campanha pelo sim. Espero não ter de o fazer durante o resto da minha vida. Espero que a nenhuma mulher nascida depois de mim seja imposto o regresso aos tempos obscuros da “perseguição social e judicial às mulheres, de interrogatórios e exames ginecológicos forçados, de processos criminais, de condenações, de abortos clandestinos em vãos de escada e mortes de mulheres por abortos inseguros”.(1)

Ainda assim, é bom lembrar que, até 2008, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Até 2007, a IVG era um crime punível com até três anos de prisão. Entre 1998 e 2007 foram investigados 223 crimes de aborto. Num país em que uma em cada sete mulheres afirmava já ter abortado, a hipocrisia maior era a daqueles que, como Marcelo Rebelo de Sousa, recusavam mudar a lei alegando que “é proibido mas pode-se fazer” e dessa forma condenavam milhares de mulheres à clandestinidade e aos abortos de vão de escada.

Desde 2012, mais nenhuma mulher morreu vítima de um aborto clandestino. Entre 2011 e 2018, as interrupções de gravidez por todos os motivos decresceram 24,2% e as realizadas apenas por opção da mulher até às dez semanas diminuíram 27,1%. As instituições europeias indicam que o número de interrupções de gravidez por 1000 nados-vivos em Portugal está abaixo da média europeia desde, pelo menos, 2015.

Claro que estes resultados seriam impossíveis se o Serviço Nacional de Saúde tivesse sido excluído do direito das mulheres a ter acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, como propunha a direita. A lei da IVG encaixou como uma luva nas políticas de planeamento familiar que já estavam a ser desenvolvidas e nos avanços da contraceção. A sua complementaridade salvou muitas vidas e pôs Portugal na linha da frente na promoção da saúde e direitos das mulheres.

Há paralelos que não podem ser estabelecidos. A história da legalização do aborto faz-se de décadas de cobardias de alguns e coragem de muitos. Cobardia, desde logo, do Partido Socialista, que empurrou para um primeiro referendo, em 1998, o que poderia ter aprovado no Parlamento, o que acabaria por provocar a necessidade de um segundo referendo para corrigir o primeiro e que, mesmo assim, não seria vinculativo. A lei do aborto acabaria finalmente por ser aprovada no Parlamento com os votos de PS, BE, PCP e PE. E coragem de muitas e muitos, incluindo a dos católicos que aceitaram dar a mão para acabar com a vergonha da perseguição às mulheres.

Treze anos depois, o país olha para a lei do aborto como se ela sempre tivesse existido, e já nem os partidos que se lhe opuseram, como o CDS, conseguem defender a criminalização das mulheres. A sociedade não aceitaria.

Mas o sucesso da lei do aborto em Portugal pode e deve levar-nos a outras reflexões sobre o país que queremos. Podemos questionar se a legalização do aborto alguma vez deveria ter sido submetida a referendo. Devemos perguntar se valeu a pena esperar tantos anos, roubando a dignidade, a saúde e a vida a tantas mulheres.

Em qualquer circunstância, e apesar da vitória em 2007, mantenho o que muitos de nós sempre achámos: os referendos devem aplicar-se a matérias em que a vitória da maioria não se transforme numa ditadura moral sobre os direitos individuais, muito menos sobre direitos humanos. Há coisas que não são referendáveis. A morte assistida, como o aborto, é uma decisão que deve ser limitada apenas pela opção livre, informada, consciente e ponderada de cada um de nós. Submeter essa autodeterminação a uma moral que lhe é estranha seria o mesmo que condenar as consciências à clandestinidade. Elas não desaparecem, apenas continuam a existir em sofrimento.

 

Deputada do Bloco de Esquerda

(1) Intervenção da deputada do Bloco de Esquerda Sandra Cunha sobre os 13 anos da despenalização do aborto