Aos 63 anos, Miguel Mota Carmo, cardiologista e professor agora retirado da Faculdade de Ciências Médicas da Nova, publica por estes dias a memória dos meses dramáticos que viveu internado no Hospital de S. José e no IPO de Lisboa há cinco anos, quando um linfoma folicular que parecia controlado assumiu uma forma mais grave e o deixou às portas da morte. A doença fê-lo mais calmo, mais grato, mais positivo e mais espiritual e é essa a experiência que partilha em Voando Sobre A Vida (Contraponto), escrito, já depois de renascer, na forma de diário, onde um médico se vê na condição vulnerável de doente e se apercebe de pequenas coisas que incomodam e de outras que alimentam a esperança e põe à prova um lado mais científico que até aí dominava a sua vida e profissão. A uma médium, Margot, agradece tê-lo feito crente e a luz que o levou a lutar. Acredita que é um milagre estar vivo, não só da Medicina.
É um homem e um médico muito diferente depois da batalha que descreve neste livro?
Sou. Tento aproveitar a vida o máximo possível. Pensamos que somos eternos, trabalho-casa, casa-trabalho. Sempre gostei de viajar e aproveitar a vida, mas era aquela luta constante, de manhã custava imenso acordar. Agora acordo e fico contente de estar acordado. E depois no trabalho era sempre a correr. Eu e a minha mulher Teresa somos os dois cardiologistas, criámos três filhas e tentámos sempre dar o melhor profissionalmente. E depois além do trabalho no hospital, no meu caso em Santa Marta, tínhamos a parte médica privada. A minha mulher fez a formação em Santa Marta, esteve quatro anos em Santarém e depois foi transferida para o Pulido Valente onde chegou a diretora de cardiologia. Em 2007, quando tive o diagnóstico de linfoma e fui fazer quimioterapia, largou tudo para me acompanhar nos tratamentos e mais tarde voltou só para a privada. Eu continuei no Santa Marta.
Escreve que antes de perceber que o cancro tinha voltado numa forma mais violenta, o processo que relata neste livro, se estava a preparar para uma semana cheia de trabalho. Como foi esse embate?
Não pensei no que me estava a acontecer. Estava numa sardinhada com amigos na final do Campeonato do Mundo de Futebol e de repente não consegui engolir. Pensei que tinha sido um espasmo do esófago, coisas de médico, mas nos dias seguintes não consegui comer. Na Faculdade tinha sido nomeado regente de uma unidade curricular, de introdução à prática clínica – para mim era o auge da carreira. Tinha de fazer uma proposta de currículo até ao final de julho, estava a bombar, não tinha tempo para estar doente.
O diagnóstico de cancro em 2007 não o tinha desacelerado?
Nada. Fiz a quimioterapia toda a trabalhar. Um indivíduo agarrar-se à doença é a pior coisa que pode haver, o trabalho até distrai. Tive agora outra recidiva do linfoma, no verão, comecei a fazer quimioterapia em agosto e nunca deixei de trabalhar. O que é que estou a fazer em casa? Se as quimios são bem toleradas, saio, estou com os doentes, faço alguma coisa.
Mas é diferente quando se ouve o diagnóstico de cancro pela primeira vez?
Da primeira vez foi uma pedrada. Pensei que não havia amanhã. Tinha 50 anos, e tinha um cancro que se diz que é um cancro dos velhotes, linfoma folicular, um linfoma indolente, os gânglios estão grandes mas, se não dão sintomas, não se faz nada. Comecei a comer como se não houvesse amanhã, era essa mentalidade. Engordei e cheguei aos 96 quilos e por fim o meu médico lá me ensinou a viver com a doença. Comecei a correr, emagreci. Depois os gânglios cresceram mais e aí fiz quimioterapia, mas superei sempre tudo bem.
Sentia-se um sortudo então até à situação que relata neste livro, quando os gânglios tinham formado uma barreira entre o esófago e o estômago.
Exatamente. Mas ainda hoje sou um sortudo. Mas sim, da outra vez a quimio foi como fazer qualquer outro tratamento. Da segunda vez foram seis meses arredado da sociedade. Estive um período em casa muito pequeno, dois internamentos curtos no IPO e o resto na Unidade de Urgência Médica (UUM) do S. José. Seis meses em que não podia comer, tinha um ostoma no pescoço com um saco. E quatro semanas em coma.
É um diário que escreveu ainda no hospital?
Fi-lo mais tarde quando pensei que devia escrever a minha história, talvez possa ajudar outras pessoas que estejam a passar por momentos difíceis. Já tinha voltado ao trabalho em Santa Marta e fui ver coisas que já não me lembrava ao meu processo clínico e aquilo ainda era pior que imaginava.
É um livro muito intimista em que fala também do lado espiritual. Hesitou na hora de se expor?
Não. As pessoas ou gostam de mim ou detestam e sempre disse o que penso e portanto disse não vou fingir nada. O que está no livro é o que penso. Eu era agnóstico e hoje sou um indivíduo espiritual e muito mais aberto.
A certa altura, quando está internado, uma amiga diz-lhe que uma médium tinha estado a interceder por si, médium que se torna muito importante no seu processo de recuperação. Quando ouviu pela primeira vez falar de uma médium não teve uma reação cética?
Não. Quando era jovem interessava-me muito por coisas paranormais, li muito sobre espiritismo, sobre profecias. Achava que aquilo tinha de ter alguma coisa de real. Quando me aparece a Margot, eu estava numa grande depressão. Tinha saído do coma, sem me conseguir mexer, só pensava no que ia ser a minha vida, o que vai ser de mim assim, não vou conseguir trabalhar. Quando a minha amiga, a Nini, me fala da Margot, para mim foi uma luz.
Agarrou-se à esperança que lhe dava.
Sim.
A Margot diz-lhe que esteve a interceder por si e que seria operado em janeiro, que era o objetivo que tinha em mente mas na altura não tinha condições físicas para isso.
Sim, disse-me que ia correr tudo bem. E eu acreditei. Sou um indivíduo pragmático e científico, mas como lhe disse estas coisas sempre me atraíram. Uma pessoa tira o curso, começa a trabalhar, só queria estudar, fazer a carreira hospitalar, universitária, nunca pensei mais nisso. Mas quando ela aparece voltei lá atrás, ao que lia aos 20 anos, e acreditei.
E a força que lhe trouxe, vê-a agora como um efeito placebo ou como uma força transcendente?
Acredito. Somos todos energia e há uma entidade suprema que nos controla. Pode ser interpretada de formas diferentes, nas várias religiões, mas vejo-a como uma energia única. A fé foi muito importante neste processo. O facto de uma pessoa crer, acreditar, ajuda muito a lidar com a doença.
Já tinha tido essa experiência como médico?
Sem dúvida, mas é diferente quando passamos por isso. Há uma coisa que deixei de ter como médico que são bolas de cristal, aquela coisa de termos a certeza do que vai acontecer ao doente. Aqueles casos em que a pessoa diz “tenho a certeza que vai correr bem”, ou ”tenho a certeza que vai correr mal”. Há exceções para tudo. Vê-se tanta coisa… Indivíduos com um prognóstico péssimo que passados dez anos ainda cá estão, outros com um prognóstico bom que passados seis meses já não estão cá. Vamos aprendendo que existe mais qualquer coisa e penso que a questão do positivismo é importante seja o que for que determina o resto.
Já no lugar de médico, como se induz esse positivismo sem criar falsas esperanças?
É difícil, mas penso que é possível. Há doentes à partida mais negativos, com um discurso mais derrotista. Mas o que tento sempre é convencer os doentes que estão pior que há um caminho e que esse caminho pode ser ultrapassado com qualidade de vida. Temos hoje muito mais ferramentas e não só na área cardiologia, onde houve uma revolução nos últimos 20 anos, também no cancro.
Voltando a Margot e ao “magnified healing”, que fez parte da sua recuperação. Em que consiste?
É uma canalização de energia mediada pela médium e por guias superiores.
Teve momentos nessas sessões que tivessem reforçado a sua convicção?
Um dia fui fazer a sessão e os guias dizem-lhe que eu estava com problema nos iões. Foi assim que a Margot o expressou. E tinha razão. Tinha feito análises e estava com falta de ferro e ela fez ali quase o diagnóstico.
Os seus colegas médicos estranharam a sua abertura para estas abordagens menos convencionais?
Os que me conhecem percebem. Também fiz acupuntura para o pé pendente que nada conseguia resolver até foi um deles que me aconselhou o Dr. José João Choy. Penso que é possível haver uma relação saudável entre a medicina ocidental e a medicina tradicional chinesa, há coisas que são complementares. Não podemos à partida negar medicinas alternativas, embora haja coisas condenáveis.
A Ordem tem alertado para tratamentos e diagnósticos adiados.
Um doente tem um cancro do estômago, vai para uma ervanária, começa a beber líquidos e com isto não é diagnosticado nem faz tratamentos – com certeza que não posso concordar com isto. Agora, meter tudo no mesmo saco não faz sentido.
Mas não existe evidência científica para muitas das terapias.
Sim, mas há problemas que se resolvem. Tinha o pé pendente e só resolvi o problema depois da acupuntura tendo feito massagens, fisioterapia. Acho que nós médicos não devíamos ser tão arrogantes em relação às medicinas alternativas mas pensar que existe complementaridade em algumas áreas.
Escreve que o cirurgião lhe diz a certa altura, quando o ia operar já depois da data que lhe tinha dito a médium e percebe que tinha ficado perturbado, que não o ia operar contra os astros. É importante essa sensibilidade para com as convicções dos doentes?
Com certeza. O dr. Fradique é um homem educadíssimo, fomos colegas desde 1981. Diz-me ‘operar um amigo, um colega e ainda por cima contra os astros…’ E reprogramou a cirurgia. Acho que poucas pessoa o fariam.
Isso tudo aproximou-o da fé?
Acho que a Margot, o facto de me ter transformado num ser crente que acreditava que ia correr tudo bem, fez toda a diferença. E depois tive momentos tão extremos que dificilmente a minha sobrevivência se explica só pela ciência. Acho que sou um bafejado por qualquer coisa miraculosa.
Não é só um milagre da medicina.
Não, não acredito que seja só um milagre da medicina. Quando tive a certa altura uma hemorragia, estava agónico e a maior parte das pessoas diziam ‘deixem-no morrer’. Se não fosse a persistência dos colegas que não aceitaram, não estava cá.
O que se percebe também ao longo do seu livro é uma mudança na perspetiva quando se vê na pele de doente.
Sim, muda a perspetiva desde logo na relação com os pares. Quando estamos no hospital, o auxiliar é o auxiliar, o enfermeiro é o enfermeiro, cada um tem a sua função e a gente manda em todos. Às vezes não é bem assim, mas do ponto de vista conceptual os médicos estão no topo da hierarquia. E de facto mudou a minha perspetiva porque passei a ver os enfermeiros completamente de outra forma.
Escreve a certa altura que os médicos acham que os enfermeiros servem para mudar soros e limpar rabos. Ainda é assim?
Pois, provavelmente muitas pessoas não vão gostar que o diga e pode haver formas mais polidas de o dizer, mas a ideia é essa e de facto não é assim.
É uma perceção é que preciso mudar?
Acho que sim. Os médicos, se formos a ver, são quem passa menos tempo com os doentes. Na UUM, os médicos estão uma hora com o doente mas o dia tem 24. Somos acompanhados pelos enfermeiros, os enfermeiros é que falam connosco, é que nos lavam. Com certeza que isto também tem a ver com a estrutura do trabalho e o médico que tenha 20 doentes depois não tem disponibilidade física e mental para estar com o doente, mas é preciso uma abordagem diferente e também condições para isso. Numa estrutura em que o que interessa são os números, não há tempo para os doentes e a Ordem até tentou contrariar isso agora com mais tempo para consulta. Mas depois existe uma componente de formação e é possível fazer diferente.
Recuperar uma medicina mais humana?
Comecei a dar aulas em 1981 e continuo a dizer: não estamos a formar médicos, estamos a formar técnicos. A parte humana, da importância do contacto, não se ensina nas escolas. Os alunos são pragmáticos, querem é acabar o curso – se lhes puserem isso à frente, tudo bem, se não puserem não vão sentir falta. E acho também que esta é uma geração mais egoísta. Éramos muito mais humanos e mais afáveis com os doentes do que esta geração agora. Um médico que não é capaz de fazer uma festa a um velhinho ou a uma criança não é médico.
Acha que devia mudar o acesso à faculdade?
Tenho a visão de que o 12º não serve para nada. Agarrava nos meninos e punha-os a trabalhar nos centros de saúde, nos hospitais, isto quem quisesse ir para a saúde. A partir deste ano zero fazia-se a seleção e muitos iam desistir. Quando digo que estamos a formar técnicos é que as pessoas querem ter horários certos, entrar às 9 e sair as 16h, e isso não pode ser, uma pessoa nunca sabe como é a vida no hospital. Para se ser um bom médico é preciso ter vocação, um médico não pode pensar que às 2 sai e fica um doente para ser tratado. Se há doentes, têm de ser vistos, que era o que nós fazíamos.
Não se devia entrar só pela nota?
Digo-lhe assim: no meu curso entrámos mil em medicina. Desses, não sei quantos entraram com 10 valores. São hoje diretores de serviço, professores. Infelizmente a começar a reformar-se, mas muitos são da nata da medicina portuguesa e entraram com 10, mas entraram por vocação. Penso que a entrevista no acesso a faculdade era fundamental.
Um médico doente tem logo uma série de colegas a quem ligar, descreve isso em vários momentos. A maior parte das pessoas não tem essa facilidade… acha que teve um tratamento diferente?
Um indivíduo quando está doente e tem uma doença grave existem em Portugal profissionais do melhor a nível mundial, agora é preciso estar no local certo na hora certa. Se aquilo que me aconteceu em Lisboa, uma hemorragia grave, tivesse acontecido em Évora ou Beja, provavelmente não estava cá. Estou vivo porque se juntaram uma série de fatores favoráveis. Quando cheguei ao S. José, caí nas mãos das pessoas que lá estavam. O que posso dizer é que tive sorte.
Mas tinha mais facilidade por exemplo em ter acesso a informação.
Sim, e para as famílias quando não conseguem saber dos doentes é difícil. Infelizmente não se pode dizer que todas as pessoas caem no sítio certo ou têm um amigo médico.
No seu testemunho fala das coisas que o incomodaram, os aviões a passar por cima do IPO, casas de banho sujas, múltiplas picadas nos dedos. Não tinha perceção dessas coisas?
Não desta forma. Os aviões nas primeiras noites fazem confusão, depois uma pessoa se calhar habitua-se. As casas de banho são imundas em qualquer hospital e devia ser das maiores preocupações porque são fonte de infeções. Era preciso mais auxiliares. Eu a certa altura sabia a que horas limpavam a casa de banho e ia logo a correr. A parte hoteleira dos hospitais é muito complicada. Devia haver uma forma de os hospitais terem sempre alguém em cima das casas de banho. Claro que depois outro fator é a civilidade de quem utiliza as casas de banho, mas aí entra a educação de cada um e é mais difícil de intervir. Mas devia haver mais cuidado. As picadas para medir a glicemia várias vezes por dia… fiquei com os dedos num oito.
Não é importante?
São protocolos que se seguem, acho que não devem ser tão cerrados. Se o doente tem sempre a glicemia controlada, 24 horas por dia, para quê picar tantas vezes? É como conto também no livro: a certa altura acordavam-me para me dar os comprimidos para dormir…
E mais pequenas coisas que mudava nos hospitais?
As visitas. A certa altura tinha 20 pessoas no quarto, era muito…
Não era benesse de médico?
Não era, num serviço era assim, mas por exemplo na UMM era muito mais rígido, penso que podia ter um horário mais alargado de visitas.
A alimentação que precisava de fazer quando veio para casa ainda com o saco também era cara, 230 euros.
Sim e comprei-a através da Liga de Amigos e Utentes do Hospital dos Capuchos. Os sacos também são caros, tive de também de comprar um aspirador e uma bomba de profusão. Houve uma altura em que o serviço de aprovisionamento não tinha alimentação hiperproteica e fomos nós a comprar. Ninguém ia ficar sem alimentação, mas era a que eu precisava para engordar e poder ser operado. Tenho a consciência de que se não fosse eu provavelmente as coisas não tinham corrido tão bem.
Ouvimos falar da degradação do SNS nos últimos anos, que é a visão que tem de dentro, já depois dessa experiência?
A visão que tenho de dentro é que há falta de material e recursos humanos. Quando voltei ao hospital houve uma altura que não havia coisas básicas, compressas, às vezes um cateter para fazer um cataterismo. Nota-se uma certa degradação mas se o SNS não caiu mais deve-se aos profissionais de saúde. Todos os profissionais. As pessoas estão ali com amor, carinho, dedicação e vão mantendo o serviço em pé com todas as dificuldades que vão tendo.
Nomeia muitas pessoas que foram importantes ao longo do percurso, por exemplo a fisioterapeuta Margarida.
Foi ela que me pôs a andar, nunca desistiu de mim. Agarrou-se a mim, era pancada todos os dias, obrigava-me a pôr em pé, a andar. Foi impecável. É um marco na minha recuperação.
E depois há os momentos de vulnerabilidade. Relata por exemplo o primeiro duche…
O meu primeiro duche, digo-lhe uma coisa… Uma pessoa não tem a noção do que é o esforço físico para tomar um duche. Tomamos duche todos os dias e aquilo não tem nada que saber. O primeiro duche que tomei foi com o enfermeiro António, com uma cadeira que tinha um buraco, que custava a entrar no cubículo. Quando ele acerta a temperatura e a água começa a cair em cima de mim, eu com o saco, com aquilo tudo, foi um prazer inesquecível… Não conseguia fazer movimentos, não conseguia lavar o rabo, limpar o rabo, eram os enfermeiros com um paninho que me limpavam todo. É a dependência total e estar assim durante meses é complicado.
Tinha vergonha ou isso passa depressa?
Sentia vergonha quando não controlava as fezes e ficava todo sujo na cama ou de uma vez que fiz xixi. Pensar que tinham de vir os enfermeiros… Só lhes pedia desculpa. E eles sempre a dizer que não fazia mal. É um trabalho horrível.
E pouco valorizado? Falamos de auxiliares que ganham 600, 700 euros…
Sim, completamente. Quis contar esta experiência também por isso e também para mostrar que se sobrevive a condições extremas, que continuo a ser uma pessoa otimista e que acredito em coisas que não acreditava e gostava que as pessoas que estão em situações difíceis e a perder a coragem, numa fase em que não veem luz ao fundo do túnel, que há caminho e luz e que têm de pensar que enquanto cá estão têm de lutar pela vida. As pessoas que desistem de viver quando estão doentes morrem muito depressa. Acho que é uma atitude errada. Estamos constantemente a ser postos à prova, seja com a família, com o trabalho, com a saúde.
Escreve que nunca pensou “porquê eu”, mas vê um sentido?
Tenho os genes para ter a doença e tive. Ninguém tem a culpa. Quando nasci estava programado para ter isto. Se era aos 20, aos 50, isso já pode ter alguma coisa a ver comigo porque há fatores ambientais que influenciam o aparecimento da doença, por exemplo o stress é um dos fatores de risco para o linfoma. Mas acho que isto foi um pequeno acidente num percurso que vou ter e não sei como vai acabar. Se não morri, estou cá para fazer alguma coisa. Para já escrevi este livro o que me está a dar uma experiência diferente. E estou a trabalhar. Faço quatro dias de semana no consultório e tenho três dias de passeio. Continuo a viajar, já tive mais duas netas, uma da minha filha mais nova que pensava que não ia ver.
A primeira coisa que quis quando veio para casa foi uma caipirinha. Os médicos não lhe deram na cabeça?
(Risos) Não me soube bem. Quando estava internado sonhava com uma sopa de cozido à portuguesa, uma imperial. Estive seis meses sem comer, era um tubo no estômago.
[“Com algumas asneiras”, acrescenta a mulher Teresa, que se junta à conversa.]
Comia Calipo. Aquele Calipo dava-me um gozo, ficava com o saco cheio daquela coisa cor de rosa. Ou a água do Luso com sabor a coco. A Teresa ficava toda chateada mas aquilo era um prazer que me dava. No hospital houve uma vez um enfermeiro que me arranjou um café, não soube muito bem.
Esteve um mês em coma e relata um sonho vivido que ainda está a tentar perceber. O que o intriga?
Vi figuras no sonho, inclusive a Teresa, mas de uma forma que não era humana mas plasmática. Com uma forma mal definida, que se percebia o rosto, mas sem corpo. A Teresa no sonho tanto me aparecia assim como na forma normal. Para mim aquele sonho é toda a vivencia daquelas quatro semanas e há partes que não consigo perceber. Naquele período houve três ou quatro dias que não estive em coma mas que não me lembro de nada e para mim faz parte do sonho. Quando comecei a escrever o livro comecei a ler sobre as teorias da alma e li livros sobre hipnose regressiva em que os psiquiatras vão para trás do nascimento e fazem a descrição da morte anterior. Teorias de reencarnação.
E passou a acreditar na reencarnação?
Sim. Já tinha lido mas não tinha pensado nisso. Mas a descrição das almas é o que de facto vi neste sonho.
Os doentes nunca lhe tinham descrito experiências desses género?
Não. Aquilo que apanhamos são aquelas experiências de doentes que dizem que saíram do corpo, viram um túnel de luz. Os doentes que reanimamos por vezes contam isso, que nos viram ali aflitos a tentar reanimar. É raro, mas contam. Eu essa luz não vi, mas vi aquela imagem plasmática. São teorias giras para quem goste destas coisas.
Escreve que quando temos tudo e ficamos sem nada qualquer coisa, por pequena que seja, é um tsunami de afetos. É uma das lições?
É uma das lições. Isso e a tolerância. Eu era um indivíduo que por tudo e por nada reagia, às vezes mal. Agora pode passar-me um carro por cima. Muito pouca coisa me stressa. Temos de viver a nossa vida e ajudar as pessoas que precisam de ser ajudadas. Já tínhamos uma consulta na Santa Casa da Misericórdia de Benavente e lá continuamos. Temos de perceber a importância relativa das coisas. Aprendi a relativizar coisas que pareciam muito importantes e não têm importância nenhuma. Vivo tranquilamente o dia a dia, como disse, acordo de manhã todo contente por acordar. Depois do que me aconteceu, estou sempre bem. Sou o mais positivo possível em relação a tudo e tento dar uma mensagem positiva. A pior coisa que pode acontecer a uma pessoa é estar rodeado de forças negativas. Atraem o mal, e quando digo o mal é a doença, maus espíritos, ondas negativas mas, o que for.
O momento mais feliz qual foi?
Foi sair do hospital, o dia em que cheguei a casa inteirinho e sem sacos foi o dia mais feliz da minha vida. E o dia a seguir à cirurgia foi épico. Sou uma pessoa bem disposta, gosto de dizer disparates, quando me apanhei fora daquilo, estava tão contente e tinha tanta gente à minha volta que o médico até pensou que estava outra vez mal. A minha mulher nem acreditava. Quando saí do hospital foi um misto de contentamento e nostalgia. Estive ali quase seis meses e aqueles enfermeiros, aqueles auxiliares, foram a minha família. Ter abandonado aquela família custou. Mas claro também estava ansioso para chegar a casa e beber a caipirinha, que foi um desastre.
Já recuperou?
Isso sim mas vinho tinto dantes gostava e agora nem tanto, prefiro vinho branco. Comer, como tudo. Tive uma recidiva este ano, comecei a emagrecer e a primeira reação quando me disseram que tinha de ir fazer outra vez quimioterapia foi má, mas estive irritado umas três horas. É a nossa luta, vamos embora, para a frente.
Conta o tempo, os cinco anos que já passaram?
Não penso nisso. Penso que vou andar aqui uma série de anos. Temos um amigo que lê a mão e há mais de dez anos dizia-me que ia passar por uma coisa muito grave mas depois ia ser uma autoestrada. Foi antes de eu saber o diagnóstico do linfoma. Vale o que vale. E há outra coisa que me move. Quando me puseram em decúbito ventral, como Cristo, os doentes são colocados nessa posição quando não há mais nada a fazer, e quando toda a gente tentava explicar a minha família, esta senhora [olha para a mulher] nunca acreditou nisso. Toda a gente dizia que ela estava em negação e que eu ia morrer e ela dizia não me falem nisso. Confiou sempre. E por isso este livro também é uma história de amor. Da minha mulher, das filhas, de amigos fantásticos.
Onde se vai buscar a força?
Li noutro dia uma coisa muito gira. A resiliência não é ter força para lutar, é lutar mesmo não tendo força. Temos de ter um objetivo e perseguir esse objetivo. A nossa vida foi sempre assim. O meu pai faleceu quando eu tinha 17 anos e fiz o curso de medicina a trabalhar.
Sempre quis ser médico?
Sim. O meu pai era militar, tinha um lado hermético, mas lá está, eu na altura já tinha um lado mais espiritual.
E a escolha da cardiologia foi por esse lado mais romântico do coração?
Não, queria ser cirurgião cardíaco… mas não fui. E ainda bem porque foi na cardiologia que conheci a minha mulher.